O Acordo Ortográfico regressou à agenda. Primeiro, por causa de um Manifesto assinado por 100 intelectuais que pede a sua revogação; «rasgue-se», é a expressão usada. Depois, pela iniciativa lançada pela Academia das Ciências propondo a sua revisão.
Parecendo coincidir nos seus objetivos, as duas iniciativas têm sentidos opostos. Porquê? Porque o Manifesto abomina o Acordo e rejeita-o categoricamente – enquanto a Academia o aceita, defendendo apenas o seu aperfeiçoamento.
Francamente, a polémica em torno do Acordo Ortográfico escapa ao meu entendimento. Não percebo tanta resistência. Mantive em tempos uma (civilizada) polémica pública com Vasco Graça Moura e continuei sem perceber. A escrita é uma convenção. Por que razão no século XIX o som hoje representado pela letra ‘f’ se escrevia com ‘ph’? Por que se escrevia ‘pharmacia’ e hoje se escreve ‘farmácia’? Porquê? Porque se convencionou passar a escrever assim. E, como esta, inúmeras atualizações foram sendo feitas na escrita, a ponto de não percebermos certos textos de há 100 anos.
Assim, apetece perguntar: os adversários do Acordo rejeitam apenas a atualização de 1990 ou todas as atualizações da língua que foram feitas ao longo dos séculos? E, no caso de aceitarem as outras, por que rejeitam esta? Por ser pior do que as outras? Por embirração?
Argumentam que Angola e Moçambique ainda não subscreveram o Acordo. Mas ignoram que Portugal e o Brasil já o puseram em prática. E isto é decisivo.
É preciso perceber por que surgiu o Acordo Ortográfico.
Com a natural evolução da língua, verificou-se que nas instâncias internacionais muitos documentos começavam a aparecer escritos de modo diferente – uns usando a grafia ‘portuguesa’, outros a grafia ‘brasileira’. Perante isto, o Governo português, numa iniciativa louvável, iniciou conversações com os PALOP no sentido de uma unificação da escrita. Até porque, dada a importância do Brasil no concerto das nações, o ‘português do Brasil’ ameaçava tornar-se hegemónico, relegando o ‘português de Portugal’ para um lugar menor.
Após negociações esforçadas, conseguiu-se uma plataforma de diálogo e, no fim, uma proposta de unificação. Apesar de os brasileiros não gostarem muito dos portugueses, aceitaram fazer inúmeras cedências.
Ora, muitos intelectuais portugueses, em vez de ficarem satisfeitos pela obtenção de um acordo – que facilita obviamente a edição de livros portugueses no Brasil, e, sobretudo, salva o ‘português de Portugal’ de ser secundarizado.
Esquecendo o mais importante, agarraram-se a meia dúzia de palavras caricaturando o Acordo.
E porquê? Por uma atitude puramente reacionária. Repito: a escrita é uma convenção. As pessoas que criticam o Acordo não o fazem por razoes científicas – fazem-no porque estão habituadas a escrever de certa maneira e não querem mudar. Acho ridículo ver certos colunistas de jornal exigirem escrever com a grafia antiga. Eu tenho escrito em jornais com as grafias antiga e moderna, e não me caíram os parentes na lama.
É curioso que entre os subscritores do Manifesto, estando pessoas de todos os quadrantes, encontra-se uma grande percentagem de intelectuais de esquerda, a começar pelo seu promotor, António-Pedro Vasconcelos.
E isto não acontece por acaso. A esquerda, que historicamente era aberta em relação à mudança, tornou-se profundamente conservadora e mesmo reacionária. O pensamento de esquerda, liderado pelo PCP, está petrificado e não quer mudar nada. Não quer mudar a escrita como não quer mudar coisa nenhuma na nossa sociedade.
Curiosamente, a Academia das Ciências foi mais sensata. Sendo embora presidida por uma figura de direita, Artur Anselmo – que também dirige o Instituto de Lexicologia e Lexicografia da Língua Portuguesa –, mostra-se mais aberta e compreende melhor os objetivos do Acordo.
Em vez de o execrar, aceita-o inteligentemente, embora propondo a sua revisão. O que se aceita.
Como em tudo na vida, é sempre possível aperfeiçoar. Andando para a frente e não olhando para trás. Mas que esses aperfeiçoamentos sejam feitos em articulação com os outros PALOP, sobretudo com o Brasil, para não iniciarmos um novo processo de afastamento entre as escritas nos dois países.
Por muitas dificuldades que haja, o esforço a fazer entre Portugal e Brasil tem de ser sempre no sentido da aproximação e nunca do afastamento.