Seis dias por semana trabalham no sítio onde vivem. Pagam-lhes e têm um quarto nos fundos. Existências resumidas a gestos num alcance tarefeiro. As ações mais repetidas, para que os patrões se sintam em casa. Delas espera-se que não se façam notar, misturando-se com o fundo, num esbatido recato. Em Hong Kong, a maioria das empregadas domésticas são filipinas. Domingo é o dia de folga e é então que algo de inusual acontece. Em Central, nas ruas e praças do distrito financeiro da cidade, uma zona de comércio de luxo vê-as sair das casas e juntarem-se. As lojas estão fechadas e nem sequer teriam nada para elas, mas no seu dia de descanso, às centenas de milhares elas ocupam o espaço público, reclamam-no como se se tratasse de um imenso recreio. O fenómeno já tem tradição, e a polícia encerra ao trânsito estas ruas. As estradas ficam intransitáveis. Nelas concentram-se numa manifestação sem um declarado sentido político, mas que não deixa de ter algo de fabulosamente inquietante.
Tínhamos já dado notícia das duas exposições que abriram esta quarta-feira ao público na Central Tejo (ou edifício velho) do Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia (MAAT). Demos então destaque à mostra comissariada por Gregory Lang e Inês Grosso, “Dimensões Variáveis”, que reúne mais de 60 obras de 52 artistas, refletindo a relação entre arte e arquitetura. Ficou o compromisso de regressarmos àquele espaço desta vez para abordarmos a outra exposição.
Em “Arquivo e Democracia” não estamos já no terreno pantanoso da arte contemporânea, mas temos um ensaio audiovisual a partir de fotografias e filmes de José Maçãs de Carvalho, captados entre 2009 e 2011 no tal Central District, onde está sediado o Hong Kong and Shangai Bank.
Cavando um buraco da fechadura entre o piso inferior do velho edifício encostado às águas do Tejo e aquelas ruas do outro lado do mundo, as imagens de Maçãs de Carvalho testemunham algo de fascinante, que nos confronta com uma manifestação que tem muito de autêntico e de ingénuo, e ao mesmo tempo não consegue deixar de nos provocar uma fortíssima impressão. Como nota o fotógrafo, esta forma “de ocupação remete para algum tipo de subversão das regras no espaço público”. Se há “uma certa inocência” neste gesto de fuga ao quotidiano, “o que é interessante é elas ocuparem aquele distrito, a zona mais rica da cidade”. Portanto, aquele que mais naturalmente as rejeitará.
Nos outros seis dias da semana, quando está em atividade, não há nada ali que lhes diga respeito, que procure atraí-las. Nas fotografias e filmes, elas estão vivas, fazem piqueniques, trazem os rádios, dançam frente à fachada espelhada e à montra das grandes lojas, retocam a maquilhagem, riem, põem um sorriso largo, abandonam o recato. Ao i, o fotógrafo chamou a atenção para o facto de as imagens captarem sempre estes lugares intersticiais, gestos perdidos e encantadores contra o fundo onde as grandes marcam sinalizam os seus domínios.
Um contraponto que “cria imagens críticas”, refere Maçãs de Carvalho, acrescentando: “Temos ali a classe mais baixa, e percebe-se isto pela forma como vestem, pelo facto de serem mulheres também, um grande agrupamento de mulheres aponta também para um potencial subversivo… Mesmo que seja ingénuo cria-se ali uma potência. E isso, enquanto artista é o que me interessa. Não é dar respostas mas colocar questões.”
Há como um tremor na retina do nosso imaginário. Perante estas imagens, não temos como não conjeturar sobre um sem fim de cenários possíveis. A revolta está dentro da imensa carga de sugestão que nos inspiram. Se há uma inocência de cada uma destas empregadas domésticas, libertas da farda, maquilhadas e com um toque ainda assim subtil de exuberância, este arquivo que nos coloca no meio delas, como se passeássemos por aquele recreio, faz-nos pensar na vida de organismos complexos, como a colmeia. Se cada abelha faz o que pode, juntas elas revelam algo mais próximo de uma consciência, e há um efeito de rebeldia controlada, uma espécie de orgulho e uma afirmação dentro de limites bastante negativos.
“A minha preocupação como artista é desde sempre o real”, diz-nos o fotógrafo, “mais do que efabulações que nos transportam para um mundo imaginário. Não quer dizer que eu não trabalhe próximo da imaginação. O que sinto nalguns destes filmes é que testemunhamos momentos intersticiais, entre a imaginação e a realidade”. As pessoas que vemos quase não dão pela câmera, vêmo-las como se roçássemos nelas, captássemos a sua intimidade a frio, e Maçãs de Carvalho explica que esta exposição foi pensada para que as fotografias funcionem como contraponto aos filmes, uma vez que estão “feitas de forma distanciada”, através delas vemos a cidade ao longe, “a cidade como imagem”.
Ao contrário da exposição nos pisos superiores, esta corta a luz para que toda a iluminação seja a das janelas das fotografias e filmes, não existe uma parafernália de obras deduzindo impressões drásticas sobre a cidade contemporânea. O que nos oferece o olhar de Maçãs de Carvalho, nesta exposição com curadoria de Ana Rito, é a experiência de “deambulação autónoma e solitária” no meio desta multidão que ostenta magníficos traços de união, e que se rebela sem provocar distúrbios, colocando-nos dúvidas e incertezas sobre que espaço público é aquele que nos resta nas nossas cidades.
“Não há um olhar piedoso da minha parte sobre esta realidade”, sublinha o fotógrafo, “o que eu gostava era que estes filmes tivessem a expressividade do tempo, pudessem ser uma experiência de tempo para o espetador. Porque a própria montagem, a forma como são filmados não obedece aos protocolos cinematográficos, está muito mais perto do protocolo fotográfico – temos tempo para as ver, vivenciar aquilo”. O artista frisa ainda como há uma liberdade absoluta nesta manifestação, “quase um excesso democrático”, com esta ocupação de um espaço que,“nestes países de matriz capitalista liberal”, se tornou efectivamente um espaço privatizado. “Esse espaço só é tornado público no dia em que elas o ocupam. A sua ocupação ativa-o enquanto espaço público e democrático.”