Discursos sobre exploração de equipas técnicas não eram o que se esperava no final de um filme como o que Salomé Lamas traz a esta edição da Berlinale. Primeira incursão pelo território da ficção, “Coup de Grâce” é imagem, sucessão de quadros em movimento, camião desfeito em pombos, naturezas mortas de areia dentro de um apartamento e uma casa inteira recriada numa rua de Alvalade, exterior e interior invertidos, e dois atores que servem antes de tudo a composição destes quadros.
Berlim a assistir a isto e Luís Urbano a repetir o que já Salomé Lamas nos tinha dito numa conversa ainda em Lisboa, antes do festival, que “este filme só existiu porque muitas pessoas foram exploradas para que ele acontecesse”, e que com os reduzidos valores dos apoios públicos para a produção de curtas-metragens o mais certo é deixar de as fazer. E estão explicados os minutos pelos quais se prolonga a longa lista de créditos no final de “Coup de Grâce”, feito com um orçamento de 45 mil euros e com uma equipa “reduzidíssima” e a trabalhar fora do calendário de rodagem. “O filme existe porque a equipa quis fazer o filme”, diz Salomé Lamas.
Nesta história quase sem história encontramos um homem, Francisco (Miguel Borges), que trabalha numa mineração a céu aberto, retroescavadoras e carregamentos de areia, e pede um dia de folga para se encontrar com a filha que achava que não voltaria a ver. Encontro estranho e absurdo, tanto quanto nos faz sentir esta sucessão de quadros que vemos em “Coup de Grâce”, ensaio de Salomé Lamas para se lançar nas longas de ficção, que se sente que é o que estes 26 minutos podiam, afinal, ter sido.
“A ficção agrada-me, não me agrada em formato curta-metragem, e isso nota–se no filme”, dizia-nos Salomé Lamas antes de partir para Berlim. “Não gosto de curtas puramente narrativas, em que há uma historiazinha… não funciona para mim como espetadora e não funcionou para mim enquanto alguém que faz. O que não quer dizer que uma longa-metragem de ficção não seja uma coisa mais convencional nesse sentido, mais narrativa e causal, daí estar a tentar fazer esta experiência de criar uma longa-metragem de ficção”, com “Fatamorgana”, que irá filmar a Beirute e da qual já está a preparar uma versão em teatro para apresentar em Lisboa. Não dá para contar uma história numa curta? “Dá, mas os filmes têm o tamanho que têm de ter, esta coisa de curta e longa é uma chatice.” Mas feito o filme veio a seleção para Berlim e “foi um alívio depois deste processo destrutivo na montagem”.
Primeira parte cumprida, viriam as Berlinale Shorts II, “The Shining Stars”, com “Cidade Pequena”, de Diogo Costa Amarante, filme que chega a Berlim feito sem apoios, quase para si próprio, com a sua irmã e o seu sobrinho como atores e a partir de um episódio real: o dia em que Frederico descobriu na escola que todos temos um coração e que, quando ele para de bater, morremos. Nessa noite, Frederico não dormiu e a mãe questionou a professora sobre se devemos contar sempre a verdade às crianças. Ponto de partida para uma viagem ao mundo emocional de Frederico e da sua mãe, o dia-a-dia apresentado em quatros cuidadosamente compostos. “Sou apaixonado pela imagem”, diz Diogo Costa Amarante. “É uma questão de composição, e construir camadas, para mim, já é estar a dizer alguma coisa, porque quando temos camadas podemos ter contraste, diferentes emoções, diferentes cores no mesmo plano.”
As apresentações de Salomé Lamas e de Diogo Costa Amarante fazem-se com um bem-vindos de novo. Já ambos tinham estado em edições anteriores da Berlinale, Salomé Lamas ainda no ano passado na secção Fórum, com “Eldorado xxi”, acabado de chegar às salas portuguesas, Diogo Costa Amarante em 2014 com “Rosas Brancas”, na mesma competição de curtas. O cinema português já é, afinal, mais que conhecido por este festival, que já no ano passado tinha selecionado oito produções nacionais.
E depois de vermos as curtas de Salomé Lamas, Diogo Costa Amarante e João Salaviza, vem o dia de hoje carregado de cinema português, com a estreia oficial de “Os Humores Artificiais”, com que Gabriel Abrantes assinala o seu regresso à competição das curtas, já exibido na Bienal de São Paulo; “Spell Reel” de Filipa César, no Fórum; e, em competição pelo Urso de Ouro, “Colo”, sétima longa metragem de Teresa Villaverde, que marca o seu regresso a Berlim 25 anos depois de “A Idade Maior”. História de uma família apanhada pela crise que é a história de todo um país que só agora timidamente se levanta da tragédia que foram os anos da austeridade.