A capa deste “Em Viagem Pela Europa de Leste”, publicado em fascículos em vários jornais, simboliza a busca do conhecimento e da liberdade por entre soldados armados e com o poder de deixar passar, ou não, homens e mulheres de uma fronteira para outra. Dois mundos de língua, linguagens e culturas divididas por ideologia, pela história, pela raiva político-militar. A então dita Cortina de Ferro, mais do que uma prisão rodeada de suposta liberdade por todos os lados, sobressai aqui como a barreira entre irmãos e vizinhos em disputa pelo controlo do seu quintal ou jardim a ser plantado. O mundo estava pronto a autoaniquilar-se numa briga que acabou com a simples queda de um muro numa cidade do centro da Europa que poucos anos antes tentara subjugar toda a humanidade num violento Reich de Mil Anos. Primeira observação desta prosa de Gabriel García Márquez: a sua linguagem nada tem a ver com o que se convencionou chamar realismo mágico.
Pelo contrário, agora é a realidade que ele vai encontrando no bloco comunista europeu que muito tem de magia, na mais negra semântica da palavra, e um “realismo” mais fantasiado do que verificável. Ler esta série de reportagens, que juntas constituem uma narrativa unificada por um ponto de vista que se vai reajustando a cada quilómetro que o autor visita, observa e tenta perceber, é ler e refletir o quanto nos ignorávamos mutuamente. Mais do que levar a História a sério, esta prosa faz lembrar a comédia do filme alemão “Adeus Lenine”. Temos todos saudades, sem sabermos bem de quê, ou talvez nos sintamos algo nostálgicos devido a um presente que nos confronta com opções existenciais igualmente indesejadas para uns ou nefastas para outros.
“Em Viagem Pela Europa de Leste” tem o seu início em Paris, quando um amigo jornalista italiano, de nome Franco, compra um carro mas não sabe o que fazer com ele. García Márquez e uma outra amiga francesa, Jacqueline, propõem uma viagem à outra Europa, começando naturalmente por Berlim Ocidental e terminando na Hungria em fins de 1956, logo depois da brutal supressão com tanques soviéticos da tentativa de abertura do regime, um prenúncio do que viria a acontecer em 1968 na antiga Checoslováquia.
Esqueçamos o que seria a ideologia do autor naquela altura e naquelas caminhadas indiscretas numa época em que a Guerra Fria aquecia perigosamente. Para além da beleza da sua prosa, ora nua e crua, ora adjetivada com humor e ironia, sobressaem dois temas: a ignorância mútua do dia-a-dia nos dois blocos ideológicos e a propaganda clássica que combina a verdade com a fantasia de quem só quer ver o que pensa que vê ou deseja. O que hoje se denomina, sem vergonha nem sentido do ridículo, pós–verdade.
Os únicos momentos verdadeiramente kafkianos neste livro serão as peripécias de atravessar de uma Berlim para a outra, mesmo ainda sem muro. García Márquez aponta, desde logo, as toneladas de dólares que a América despejava no seu lado de Berlim para construir uma espécie de gigantesco e colorido centro comercial que do outro lado despertava inveja, desejo e revolta. O que se vê é o fatalismo existencial que nunca faz prever a fúria de 1989, quando o muro vem finalmente abaixo e os cidadãos saltam de um lado para o outro, em abraços, lágrimas e desejo de comprar calças de ganga e sapatilhas de marca. Ouvem-se algumas críticas ao regime totalitário e um gigantesco edifício erguido em homenagem a Estaline é alvo de chacota e uma nódoa na paisagem de uma cidade ainda furada pelas balas de outrora.
É em Varsóvia que se prossegue uma viagem mais ou menos calma e agradável por países subjugados, como a já mencionada Checoslováquia, a Polónia e a Hungria. Não é o perigo nem a preocupação de aniquilamento nuclear o tema de conversa, nem sequer a proibição aos visitantes de percorrer certos sítios ou ruas, nem mesmo a de falar com quem quisessem e sobre o que quisessem. Quem espera a violência real e psicológica de um povo cercado pelas polícias ou tropas soviéticas, desengane-se.
É o quotidiano de cada um que serve de conversa, e não sei se García Márquez e os seus dois colegas e amigos (que desaparecem de vista, em descobertas e vivências próprias durante longos períodos naqueles três meses de visita ao outro lado da fronteira) encontram mais tristeza ou preocupação do que encontrariam em Lisboa exatamente nos mesmos anos 50.
Trata-se aqui de uma mera leitura minha, de comparações livrescas ou documentais, e não de experiência própria para além da minha adolescência e antes da emigração para os EUA devido à falta de perspetivas de futuro. Sem querer branquear aqui seja o que for, relembro, no entanto, que também nasci num país sem hospitais adequados, escolas, aposentações minimamente decentes, andando em caminhos de terra e lama, vivendo numa casa sem água canalizada e sem eletricidade até aos anos 60, enquanto envergava uma farda da Mocidade Portuguesa e levantava o braço e a mão aberta ao outro totalitarismo.
Meu pai falava-me numa polícia secreta pouco simpática e era obrigatória uma licença para se ter um isqueiro com que a maioria dos fumadores acendiam os seus charutos de tabaco ou de folha de milho, tudo plantado por conta própria na terra ao lado, e necessitavam ainda, dizem-me os mais velhos, de uma espécie de “passaporte” para viajar de uma ilha açoriana para a outra. E melhor seria adquirir só clandestinamente certos livros, jornais ou revistas. Havia o Aljube, Caxias e o Tarrafal para os mais malditos. Nem falemos de outros no Ocidente “livre”, inclusive no nosso país-irmão, no outro lado de Elvas.
Gabriel García Márquez surpreende os seus leitores com as mais inesperadas observações e interpretações das várias realidades que nos descreve nestas páginas. Se na antiga Checoslováquia quase adivinhamos um sentido de liberdade e ligações de todo o género ao Ocidente, com as suas mulheres em busca da moda corrente em Paris e as suas fábricas a exportar todo o tipo de maquinaria para os países capitalistas, na Polónia faz-nos entender que um catolicismo dos mais conservadores se alia de modos vários a uma certa ideia de comunismo, e a velha aristocracia continuava a vestir-se a rigor nos seus jantares e bailes de gala.
Na União Soviética, o autor, entre dezenas de milhares de delegados num gigantesco e propagandístico festival das artes e da multiculturalidade do império, fala à vontade com todos, e se há vigilância especial quase não a notamos, não a vemos, mesmo que nem um naco de informação do exterior penetre por outros meios no outro lado da Cortina. Na Hungria encontra a raiva contida contra a tropa soviética que acabara de esmagar uma tentativa de libertação ou abertura máxima, liderada primeiro por estudantes e depois congregando boa parte da população mais corajosa. É neste país que, de facto, percebemos a força repressiva do regime o fecho completo ao exterior, tido como inimigo.
“Em Viagem Pela Europa de Leste” não será só um livro de impressões, e muito menos de qualquer apologia da utopia imaginária dos velhos comunistas. É um retrato meio claro, meio manchado pelo tempo e pela realidade da nossa humanidade a saque.