Marcelo Gomes foi a Berlim dizer que a descolonização é hoje, que continua por fazer num Brasil que não sarou ainda as feridas abertas pela ocupação portuguesa, sociedade-espelho da que o colonialismo da coroa portuguesa erigiu e que encontramos neste “Joaquim”, que recua ao Brasil de há 250 anos. “Todas aquelas fraturas sociais estão expostas na nossa sociedade deste momento”, diz o realizador, que nos livros sobre os costumes da época foi encontrar uma espécie de capitalismo, o princípio de que “onde abunda riqueza existe também muita pobreza”. “Joaquim”, que se estreou ontem na competição oficial da Berlinale, é política, História que grita para ser reescrita, e porque não começar logo por um retrato do herói nacional da revolta contra a coroa portuguesa, Tiradentes.
Tiradentes que era Joaquim José da Silva Xavier e só podia chamar-se “Joaquim” este filme de Marcelo Gomes, a quem não interessa filmar o que conhece. “Gosto de fazer cinema sobre o que desconheço”, diz sobre esta coprodução luso-brasileira que, com “Colo”, de Teresa Villaverde, compete pelo Urso de Ouro no Festival de Cinema de Berlim, que termina já no próximo domingo. “No Joaquim interessou-me a mudança do paradigma de soldado da coroa para rebelde contra a coroa vivendo no século xviii, numa sociedade cruel e desumana, onde a única lei era a de cada um por si. Como é que esse cara mudou?”
De documentos históricos sobre a vida de Tiradentes existem apenas uma certidão de batismo e os registos do processo que lhe foi movido por traição ao rei; por isso, da pesquisa e dos factos históricos, Marcelo Gomes partiu para a imaginação. “A partir das minhas leituras dos livros que narram a vida quotidiana dessa época no Brasil imaginei que a única forma de ele ter mudado era ter-se apaixonado por alguém que fosse um desclassificado para aquela cultura, vivendo num grupo de desclassificados e admirando a riqueza dos desclassificados.”
Vem então a história do amor impossível pelo meio da ganância e da traição no salve-se quem puder da manta de retalhos em que se transformou o Brasil colonial. Joaquim (Júlio Machado) com a Preta, que tinha nome e era Zua (Isabél Zuaa), princípio da viragem de Tiradentes de alinhado para símbolo da rebelião. “A elite que existia”, explica o realizador, “começou a copiar exatamente o pensamento colonial do português, a querer ser dona do poder mantendo o mesmo pensamento: explorar a terra e manter a riqueza nas mãos de poucos, sem construir uma sociedade mais justa.”
A viragem desta história começa quando Preta se faz Zua, personagem-chave do enredo construído por Marcelo Gomes para dar sentido a um herói num tempo que não estava para eles. E Isabél Zuaa, portuguesa com origens angolanas e guineenses, nota a importância que teve este papel no trazer para o cinema questões que continuam atuais. “São questões de sobrevivência e resistência para conseguir viver num mundo em que o meu corpo, o meu biótipo é olhado com vários preconceitos. Ter uma personagem que consegue finalmente fazer alguma revolução, trazer isso para o Joaquim e ver a sua humanidade é certamente um privilégio”, diz a atriz que com Welket Bungué, escravo de Tiradentes, Nuno Lopes, português degredado que os acompanha numa expedição em busca de ouro, e Diogo Dória compõem a parte portuguesa do elenco.
Para este filme em que começou a trabalhar há oito anos, Marcelo Gomes procurou justamente atores de várias proveniências. “Porque Minas Gerais era isso. Fomos à procura de atores no Brasil, fiz um teste com o Júlio Machado, gosto de fazer testes, testes e testes.” E é mesmo de Júlio Machado o cabelo que Zua corta à facada numa cena que teve de ser filmada num take. “A cena do cabelo não podia ter take dois”, recorda o realizador. “Se a câmara parasse, acabava o filme. Falei à câmara que não podia parar, à Zuaa que não podia parar de cortar o cabelo, e foi aquela adrenalina, e quando acabou a cena, a Zuaa começou a chorar pedindo desculpa porque cortou-lhe um pouco do ombro, mas eles, que são atores magníficos, continuaram fazendo a cena para não atrapalhar o processo de filmagem.” Uma das cenas mais marcantes de um filme que está cheio delas. Da fuga de Preta e a travessia de um rio de piranhas – e a pergunta de Matias (Nuno Lopes) sobre o que é uma piranha, ao primeiro contacto de Joaquim com o que é uma revolução, na “espécie de hip hop do séc. xviii” que é ver um escravo negro fazer música com um índio.
“Todas as colonizações foram cruéis. Na Ásia, na América Latina, não só a de Portugal no Brasil. Entender esse passado é chave para compreender o presente, porque o passado está bem dentro do presente”, diz Marcelo Gomes. “Por isso é que aquela câmara é tão viva, para que se entendesse bem essa relação entre o presente e o passado.” Mas é sobre futuro que se fala nesta conferência de imprensa com o realizador e quase todo o elenco de “Joaquim”, brasileiros a pedirem, entre aplausos de jornalistas, um país mais justo para todos.
A história de Tiradentes como Marcelo Gomes a conta termina no ponto em que começa aquela que nos chegou pelos livros de História. Final abrupto mas brilhante para este retrato ficcionado de um herói imperfeito que o Brasil volta a pedir 250 anos depois.