Daft Punk. 20 anos a abanar o capacete

Apesar da proveniência electrónica, “Homework” tem assento na história da música pop e vinte anos depois é celebrado com uma festa no Lux. Gravado em casa, como o título indica, o álbum inaugural dos Daft Punk não só estreitou ligações entre o “underground” e “mainstream” como subverteu as regras da indústria e instituiu uma nova…

Toda a criação tem o seu contexto. Se o Verão do Amor aconteceu, foi porque o tempo de guerra pedia tréguas. Se os Smiths brotaram no tempo de Thatcher, foi uma reação ao cinzentismo político e social daquela época. E se “Homework” saiu para a rua há vinte anos também teve de haver um motivo.

O álbum inaugural dos Daft Punk atinge a bonita marca dos vinte anos mas nem precisava de um número redondo para ser um considerado um clássico. Da música de dança, mas com impacto pop, ou não fosse “Around The World” – canção e vídeo – um dos símbolos da década de 90. Um ouvido casual podia terminar aqui a expedição pela memória mas há toda uma história a envolver não só “Homework” como os Daft Punk.

Filho de uma era dourada da música eletrónica, é o ponto mais alto da efervescência electrónica que se instalara em Paris. Mas o movimento diagonal era europeu. No Reino Unido, “Trainspotting” tinha morto as raves. Rave morta, rave posta, a música de dança saía das caves, os Prodigy considerados por Dave Grohl “a banda de rock mais excitante da época”, Chemical Brothers, Fatboy Slim, Groove Armada e Basement Jaxx perfilhavam um som musculado mas sedutor para as pistas de dança chamado “Big Beat”; e o drum’n’bass ganhava prémios; na Áustria nascia uma cena local, mais serena mas charmosa personificada por Kruder & Dorfmeister, Tosca e Sofa Surfers. Em França, o “french touch” era central nessa união europeia do hedonismo e da diletância.

Os primeiros agentes desse movimento tinham sido DJs como Laurent Garnier e… David Guetta (sim, David Guetta). E só depois se ouviria falar de Étienne de Crécy e Philippe Zdar (os futuros Motorbass) ou Kid Loco. O que começara por ser a resposta francesa à cultura “rave”, abria horizontes rítmicos.

Produtores como St. Germain, La Funk Mob, DJ Cam e uns imberbes Air absorviam outras culturas como o funk, o jazz e o trip-hop. É nesta altura, em meados dos anos 90, que se começa a ouvir falar dos Daft Punk na imprensa especializada. Ainda não havia capacetes nem uma imagem robotizada. Nem um álbum. Só dois singles, “The New Wave” (1994) e “Da Funk” (1996). O bastante para chamar a atenção da Virgin, que assinou os Daft Punk para todo o mundo.

A 20 de Janeiro de 1997, “Homework” via a luz do dia. O responsável pela aproximação do “french touch” à pop é maior do que um movimento ou uma época. E por isso chega intacto a 2017 com honras de celebração. Moullinex, um dos convocados para a festa deste sábado no Lux, continua a ouvi-lo com mais gozo do que “a maior parte da música actual”. O produtor que no Lux irá retrabalhar ao vivo e em formato banda as canções, destaca a diversidade de géneros e o espírito DIY de “um disco gravado em casa com uma caixa de ritmos” e embora reconheça a preferência pelo sucessor “Discovery”, admite: “Mudou a minha vida”. A de Luís Clara Gomes e a da Discotexas, que haveria de fundar com Xinobi dez anos depois quando os dois se aproximaram pela obsessão com “os discos da editora de Thomas Bangalter”. Mais recentemente, recorda um episódio com o membro dos Daft Punk. “Num showcase em Paris, o Alan Braxe (outro dos produtores ligados a esta vaga e primo de DJ Falcon que estará na festa do Lux) tocava a seguir a mim e o Thomas Bangalter estava nos camarins. Como sou a pessoa mais tímida do mundo não lhe fui falar”, confessa.

A deixa de Moullinex é boa. A idade é apenas um número, neste caso. “Homework” continua a um exercício superior de reciclagem do melhor quilate funk, disco sound, música electrónica francesa dos anos 70, house facção Dance Mania Records, isto é do gueto, e techno; fresco e sem concessões.

O contrato com uma multinacional não retirou poderes aos Daft Punk. Praticantes incondicionais do do-it-yourself e maníacos do controlo, souberam jogar às escondidas com a imagem e, aos 22 anos, criar uma história visual além da música.

Os melhores realizadores foram chamados para filmar os vídeos, de Spike Jonze a Michael Gondry, mas se os vídeos de “Revolution 909” e principalmente “Around The World” pertencem à memória visual colectiva é por fazerem justiça à condição do nome “Daft Punk” (punk fatela) e não por serem produções hollywoodescas com orçamentos faraónicos.

Amanhã no Lux, com o amigo parisiense DJ Falcon, Moullinex, Midnight, Pinkboy, Dupplo, Cpt. Luvlace e Dinis celebra-se não só um álbum, uma estética, um movimento ou uma época mas também uma ética de trabalho. Se os Daft Punk precederam gerações – por exemplo, a dos compatriotas Justice e do contemporâneo destes Gesaffelstein – foi porque estas canções não só deram muito trabalho ao corpo como continuam a dar que pensar. E há vinte anos os muros colocados perante a credibilidade da música de dança eram bem mais altos.