Oito de Novembro de 2008 fica para a história da democracia como o dia em que a regionalização foi rejeitada pelos portugueses no segundo referendo realizado no país. A derrota da regionalização, uma das principais bandeiras de António Guterres, foi a vitória de Marcelo Rebelo de Sousa, que liderava o PSD e não deixou que a reforma fosse concretizada sem uma consulta popular.
O aviso foi feito por Marcelo Rebelo de Sousa assim que chegou à liderança do partido. No congresso em que foi eleito presidente do PSD, em Santa Maria da Feira, Europarque, em Março de 1996, o novo líder do partido assumiu que era favorável à regionalização, mas não abdicava do referendo. A biografia do agora Presidente da República, da autoria do jornalista Vítor Matos, resume o espírito do então presidente do PSD: «Marcelo começa por pensar que se o PS faz a regionalização toma conta do poder em todo o país».
O PS recusa a realização de um referendo. António Guterres acusa o presidente do PSD de querer levar o PS a entrar «num jogo de factos políticos atrás de factos políticos». Não era mentira, mas Marcelo nunca desistiu da consulta popular. «Acusam-me de ser frenético, mas frenético é o eng. Guterres na sua pressa de fazer a regionalização».
Marcelo e Guterres eram amigos há muitos anos, mas o clima azedou. O líder do PSD tinha, de facto, uma agenda frenética e bons argumentos para convencer os socialistas. O PS não só precisava dele para alterar a Constituição como do apoio para aprovar os orçamentos do Estado. Marcelo jogava duro e os deputados do PSD ausentaram-se do hemiciclo no dia que a lei da regionalização foi a votos. Passou com os votos do PS e do PCP, mas o pior estava para vir.
Marcelo ganha a guerra do referendo
Guterres acaba por ceder e avança com o referendo. «Em matéria de regionalização levou a sua avante, mas andou de vitória em vitória até à derrota final», diz o ex-primeiro-ministro ao jornalista Adelino Cunha, no livro “António Guterres – Os segredos do Poder”.
O referendo avança com duas perguntas que satisfazem as pretensões de Marcelo. A primeira questionava os eleitores sobre se concordavam com «a instituição em concreto das regiões administrativas» e a segunda sobre se concordavam com «a instituição em concreto da região administrativa da sua área de recenseamento eleitoral».
‘O PS apresentou uma ideia bizarra’, diz Capucho
Marcelo era favorável à regionalização, mas entrou na campanha pelo ‘não’ e contra aquilo a que chamou «uma escandalosa negociata para retalharem o nosso Portugal». A direção do PSD contestava o mapa cozinhado pelos socialistas que dividia o país em oito regiões. «O PS veio com aquela ideia bizarra e completamente idiota de partir várias regiões ao meio e apresentou um projeto que retalhava muito o território e isso proporcionou que o PSD dissesse: regionalização sim, mas não esta», recorda, em declarações ao SOL, António Capucho, que era vice-presidente do partido.
Capucho diz que a direção do PSD queria esta reforma, mas «uma regionalização que abarcasse as cinco regiões-plano que existem. Na prática as regiões coincidiriam com as atuais regiões-plano».
O mapa das regiões foi intensamente discutido e acabou por ser o resultado de muitas cedências. O socialista José Junqueiro admite o erro: «O mapa não era aceite por ninguém. Aquilo era uma coisa improvável. Estava desadequado à realidade do país, porque a dimensão do país não aconselhava a que houvesse tantas regiões”.
Junqueiro chama-lhe «uma regionalização muito regionalista». Jorge Coelho, na biografia de Marcelo Rebelo de Sousa, também cede que o PS andou mal neste processo. «Cometemos um erro que foi o mapa das regiões. Se tivéssemos apresentado um mapa com as cinco regiões-plano teria sido diferente».
Marcelo aproveitou bem a embrulhada em que o PS se meteu e percebeu cedo que as coisas iam correr mal aos socialistas. Capucho revela que existia, no PSD, «a convicção de que o referendo tinha uma grande possibilidade de não vingar, porque aquela proposta era de facto muito bizarra. Não fazia sentido nenhum». O ex-vice-presidente social-democrata confessa, porém, que se o PS tivesse seguido o caminho indicado por Jorge Coelho a direção do PSD ficava entalada. «Se o PS tivesse enveredado por um referendo que abarcasse as cinco regiões-plano a posição do Marcelo seria muito complexa. Tinha mesmo que manter a coerência e convencer o partido a aceitar aquela regionalização».
O PSD estava dividido. «No PSD não havia uma única voz», confirma Macário Correia, que fez campanha pelo “sim”. O ex-governante admite, porém, que «aquele mapa não fazia grande sentido, sobretudo aquela maneira de arrumar as regiões». Dirigentes do partido como Mendes Bota, do Algarve, ou José Raúl dos Santos, do Alentejo, também alinharam do lado dos defensores das regiões.
As cedências de Guterres não escaparam ao PCP, que se envolveu na campanha para que a regionalização fosse uma realidade. Carlos Carvalhas, na noite em que os portugueses rejeitaram dividir o país em oito regiões, criticou «as vacilações e contradições do PS ao longo de todo este processo do referendo». O então secretário-geral do PCP, numa análise sobre a campanha, concluía que PSD e CDS conseguiram «falsamente convencer muitos portugueses de que haveria o risco, neste referendo, de uma real fragmentação da unidade nacional, com a constituição de oito pequenos estados regionais dentro do Estado, quando o que estava de facto em causa era apenas a instituição de novas autarquias de âmbito regional».
A vitória do ‘não’ e a falta de vontade do PS
O resultado foi um desastre para os defensores da regionalização. O “não” venceu com 60,87% dos votos. A derrota estrondosa retirou o assunto da agenda política por muitos anos. José Sócrates ainda defendeu, em 2009, num discurso que fez em Évora, um novo referendo para que de «uma vez por todas o Alentejo, como outras regiões, possam ter também voz política e voz própria no país». Mas dois anos depois deixou cair a proposta com o argumento de que «as circunstâncias económicas e políticas» não eram favoráveis. Os socialistas temiam uma nova derrota e só queriam voltar ao assunto se existisse um consenso nacional.
José Junqueiro retira uma conclusão de toda a discussão: «Verdadeiramente nunca ninguém teve vontade de fazer a regionalização». O ex-secretário de Estado da Administração Local acredita que «o poder central nunca quis, nem quer, regionalizar». E, no entanto, a regionalização foi inscrita na Constituição logo em 1976.