Ontem, o “Jornal de Angola” classificou como justa a nota de protesto do Ministério das Relações Externas de Angola emitida na sexta-feira passada e acusou Portugal de “falta de vergonha” na forma como foi conduzido o processo que levou à acusação do vice-presidente angolano, Manuel Vicente. A nota em causa qualificava a atuação da justiça portuguesa como “inamistosa e despropositada” e concluía que se tratava de um “sério ataque” que punha em causa a relação entre os dois países.
A retórica do comunicado, divulgado pela agência Lusa, era dura. Os responsáveis pelas relações externas angolanas consideraram que a acusação do seu vice–presidente era baseada em “pseudofactos prejudiciais”, criados para lesar os “verdadeiros interesses dos dois países, atingindo a soberania de Angola ou altas entidades do país por calúnia ou difamação”. Recorde-se que Manuel Vicente foi acusado pelo Ministério Público (MP) português no âmbito da Operação Fizz. À data dos factos, Vicente era presidente da empresa Sonangol.
A resposta de António Costa chegou ainda durante a tarde de sexta: “Angola também tem de perceber que não depende nem do Presidente da República, nem da Assembleia da República, nem do governo as decisões que, com total independência, o poder judicial toma.”
Trocando por miúdos, o primeiro-ministro – que apelou para a continuidade da cooperação entre os dois países – explicou que, em Portugal, governo e justiça misturam-se tanto como a água e o azeite.
Separação de poderes
“É efetivamente assim”, disse ao i Pedro Garcia Marques, especialista em ciências jurídico-criminais e professor na Universidade Católica Portuguesa.
“Do ponto de vista de uma análise estritamente jurídica, uma coisa é a dimensão política, outra é a dimensão da justiça. E, em Portugal, essa separação é muito clara”, explica Garcia Marques. “Os tribunais são órgãos de soberania independentes dos restantes poderes, seja do governo, do parlamento ou do Presidente da República. E tanto os magistrados judiciais como os magistrados do Ministério Público não estão nem podem ser condicionados por orientações políticas”, salienta.
Se no caso dos magistrados judiciais o termo utilizado é mesmo a “independência”, a Constituição usa a expressão “autonomia” para se referir à separação de poderes na atuação dos magistrados do MP. Na prática, o resultado é o mesmo. “Hoje em dia, o governo só tem competência para supervisionar o exercício da legalidade por parte do MP. Nem sequer tem competência para orientar a atividade do MP.”
Em Portugal, as águas estão bem separadas, o que não significa que aconteça os mesmo noutros “países democráticos com créditos indiscutíveis”. “Aqui ao lado, o Ministério Público espanhol tem dependência do ministério da Justiça; em França, algo semelhante acontece”, explica o professor. “Isto é importante para se perceber que, em Portugal, a acusação é um ato da exclusiva competência do MP”, diz o especialista.
Portanto, como diriam os brasileiros, António Costa falou e disse.
Acabar com os preconceitos
Lívia Franco, analista política e professora na mesma instituição, diz que já há uma espécie de tradição de “ataque” sempre que há um incidente diplomático deste género entre os dois países.
“O que está sempre em causa nas relações diplomáticas entre Portugal e Angola é, evidentemente, o nosso passado histórico-político comum marcado pela desigualdade”, disse a professora universitária ao i.
Desde o final da década de 80 que, relembra a académica, os dois Estados se reconhecem como iguais. “A partir do final da década de 80, e principalmente com a criação da CPLP, veio a confirmação de que a relação de Portugal com as ex-colónias tinha entrado numa nova fase em que somos todos Estados soberanos que se tratam e reconhecem como parceiros iguais.”
Já passaram cerca de 30 anos, mas parece haver uma espécie de atrito que ainda não foi ultrapassado. “Há uma dificuldade que se nota desde essa altura: o governo português e, dentro do governo, a diplomacia portuguesa são sempre mais tolerantes e cuidadosos na sua retórica, sobretudo para com Angola. E o contrário não é evidente.”
Para Lívia Franco, já é hora de seguir em frente. “Como analista, acho que já é tempo de esses preconceitos todos, de um lado e do outro, serem ultrapassados. Mas esta disparidade de tom revela, de algum modo, que o nosso é um regime democrático consolidado e que o regime de Angola mostra ter dificuldades com a democracia”, diz a docente, que considera que este incidente “não é um momento isolado”.
“Um incidente deste tipo nas relações entre países democráticos é relativamente frequente”, desdramatiza, considerando que a resposta de António Costa foi apropriada. “O primeiro-ministro fez uma coisa muito importante ao sublinhar que há aqui uma separação de poderes. A democracia funciona com separação de poderes.”
Pedro Garcia Marques diz entender o “incómodo”. “Não é difícil perceber que uma acusação relativa a alguém que desempenhe uma função cimeira num Estado , do ponto de vista político, possa levantar dificuldades de relacionamento.”
Visitas diplomáticas
Santos Silva já afirmou que a visita do primeiro-ministro a Angola, prevista para a próxima primavera, continua a ser planeada. Mas, segundo a última edição do “Expresso”, a serenidade do momento poderá estar a ser posta em causa.
“Como pode Angola acolher de braços abertos o chefe de Estado de um país cuja justiça (…) pretende linchar na praça pública o nosso vice-presidente?”, disse um alto funcionário do Estado angolano citado pelo semanário.
A visita a Angola da ministra da Justiça portuguesa, Francisca Van Dunem, que deveria ter decorrido na semana passada, foi adiada um dia antes – um compasso de espera que até poderá ser benéfico. “Estas visitas são mais úteis quando as relações entre os Estados estão em momentos bons. Por isso acho razoável, do ponto de vista político, que seja alterada”, considerou ao i Lívia Franco.