A transferência de dinheiro para offshores durante o governo do PSD e do CDS, liderado por Pedro Passos Coelho, já fez rolar uma cabeça.
Paulo Núncio resignou à comissão política do CDS-PP e assumiu as responsabilidades da não publicação das estatísticas acerca das transferências em causa.
O i falou com Vasco Valdez, também ele antigo secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, que afirma que “aparentemente, o dinheiro não terá saído ilegalmente porque os bancos transmitiram a devida informação”.
“O que importa agora é a Autoridade Tributária fazer saber se há ou não impostos em falta sobre o dinheiro que saiu [os alegados 10 mil milhões de euros], o que é um assunto diferente”, esclarece Valdez. “O assunto está mal esclarecido porque nasce de um sound bite.”
Carlos Guimarães Pinto, professor na Universidade Católica Portuguesa, clarificou ao i que “a legislação portuguesa considera paraísos fiscais mais de 80 países – o que corresponde a mais de um terço de todos os países do mundo –, sendo impossível a economia funcionar se não houver trocas comerciais com esses países que resultam em transferências de dinheiro”.
Por outro lado, Guimarães Pinto diz que “é difícil acreditar que alguém que obtenha rendimentos ilegalmente os transfira de Portugal para um paraíso fiscal, sabendo do tratamento especial a que essas transferências estão sujeitas”.
Importante, para o académico, “é saber se há dados que não foram tratados e, quando o forem, saber se será encontrada alguma irregularidade”, visto que “até agora, nos dados já tratados, não foi encontrada nenhuma”.
Legalmente, Portugal garante total liberdade na circulação de capitais – o que quer dizer que nada impede o dinheiro de sair do país – desde que, por outro lado, qualquer rendimento que esse dinheiro gere em determinado paraíso fiscal seja devidamente taxado; se tal sucedeu ou não, ainda está por averiguar ou, pelo menos, por ser tornado público.
Um antigo governante da pasta das Finanças assumiu ao i que “é necessário separar o plano burocrático, que são as estatísticas, e a opção política de não as revelar”. “Ele já não é governante. Deixa os órgãos do CDS, vai ao parlamento esclarecer [quarta-feira] e o assunto acaba. Fez bem”, avalia a mesma fonte, em jeito de conclusão.
O i sabe que, na passada semana, Núncio terá garantido ao gabinete de Passos Coelho que a omissão estava somente relacionada com as estatísticas, apesar de ser um erro sem precedentes. Nos governos do Partido Socialista que antecederam e sucederam ao executivo de Passos, os dados foram publicados.
Em entrevista ao “Diário de Notícias”, Paulo Núncio havia defendido que a Autoridade Tributária [AT] “já estava obrigada a publicar a estatística com base no despacho do meu antecessor” – cenário que José Azeredo Pereira, contemporâneo de Núncio como diretor-geral da AT, desmentiu em comunicado à imprensa.
Uma “proposta de publicação foi solicitada por duas vezes”, escreve Azeredo, garantindo que “erros de perceção podem demorar dias”, mas nunca “quatro anos a resolver” – precisamente o tempo que Paulo Núncio chefiou a fiscalidade nacional.
País deve muito a Núncio, PSD deve mais
Assunção Cristas reagiu ao pedido de demissão de Paulo Núncio ao seu lugar de vogal na comissão política do CDS. A presidente centrista afirmou ontem, em declarações à comunicação social, que “o país deve muito” a Núncio no combate à evasão fiscal, que este “revelou grande elevação de caráter” e está disponível “para todos os esclarecimentos”.
Núncio, como Cristas, lembrou que a Autoridade Tributária tem, desde 2012, “a possibilidade de liquidar todos os impostos devidos nestas situações no prazo alargado de 12 anos [antes era de quatro anos]”, o que faz com que qualquer cobrança em falta sobre estes capitais tenha até 2024 para ser resolvida.
Quem aparentou satisfação com a responsabilização de Paulo Núncio foi o PSD, que enalteceu a tomada de posição do centrista e lembrou a importância de averiguar se o erário público foi prejudicado. Hugo Soares, vice-presidente da bancada social-democrata, adiantou que a “publicação das listagens” de transferências para offshores “não pode mais estar dependente de uma decisão político–administrativa, de um despacho de um secretário de Estado”. Nesse sentido, o PSD apresentará uma iniciativa legislativa que torne a publicação das estatísticas obrigatória.
À esquerda, o PCP sustenta que “a confissão” de Núncio “confirma a responsabilidade do PSD e do CDS”, que “esmagou os trabalhadores”, mas fazia “vista grossa a 10 mil milhões que saíam do país”. O Bloco afirma que a responsabilização do ex-secretário de Estado devia ser acompanhada “pelos ministros das Finanças a que respondia”, Vítor Gaspar e Maria Luís Albuquerque.
No seu artigo semanal no “Expresso”, Manuela Ferreira Leite criticou António Costa por uma intervenção que “só pode ser mal-intencionada”, pois “não é aceitável que o responsável máximo do governo, a quem se exige o máximo rigor, denuncie casos sem o seu conhecimento concreto”.