Juan Gabriel Vásquez. “É imoral um romance que não acrescente nada ao conhecimento do ser humano”

Publicado em 30 países com enorme êxito junto da crítica e do público, Vásquez é o nome mais forte entre a nova geração de autores latino-americanos

Juan Gabriel Vásquez. “É imoral um romance que não acrescente nada ao conhecimento do ser humano”

Na tarefa de salvar a diversidade das espécies na sua Arca, se Noé não pudesse arrebanhar mais do que os escritores que passaram pela última edição do Correntes d’Escritas, fica a sensação de que, além de algumas memórias de vidas contra um fundo fosco, a civilização atual não teria direito a um grande retrato. As intervenções partiam quase sempre do princípio de que o escritor é o protagonista da literatura e, por isso, tudo o que dissesse sobre si mesmo, sobre a sua vida, saciaria o público que voltava a encher a lotação do Cine-Teatro Garrett. Poucas foram as intervenções que tomaram como princípio o desejo de transmitir conhecimento sobre uma realidade que não coubesse no quarto, nesse corpo sentado a uma mesa, a forjar a liga de aço que satisfaça o seu narcísico desejo de reflexo. As sessões decorreram numa sala de espetáculos, mas a sensação era de que podia tudo ter sido visto pela televisão. Comentadores revezando-se, alguns sem particular fluência, cabisbaixos, lendo dos papéis como se fizessem comunicações académicas ridiculamente solenes, tantas vezes dando conta das inquietações (quase burocráticas) que constroem o estereótipo do escritor. Entre os 83 escritores convidados houve exceções, contudo. E algo de muito diferente se passou na intervenção de Juan Gabriel Vásquez, que procurou abrir janelas, lançar a atenção de quem o ouvia para outro lado, dar-lhes mundo.

À margem do festival, um dos escritores mais velhos, trazidos de outro país, comentava que não percebia os motes servidos de antemão às mesas dos escritores. Uns versinhos brincando consigo mesmos, atirando miolo de pão aos patos no lago, sugestões vagas, dessas que desde logo perdem o sangue, apontam em direção a coisa nenhuma: “Nós só jogamos com as palavras que nos deram”, “devo ter cuidado com as palavras”, “se as torturarmos, as palavras acabarão por confessar”, “toda a palavra será sempre um jogo por inventar”, “de um jogo frágil de palavras se faz a literatura”…

Palavras, palavras, palavras, já dizia o príncipe. E a vida escapa-se-lhes. O tal escritor notava que teria muito mais sentido, para evitar “puxar o saco”, que os temas fossem os grandes, aqueles que servem de linha de partida aos maiores desafios: “Violência, poder, Deus, sexo, paixão, morte…”

Se a maioria dos escritores não escapou ao anedótico, à pequena história, ou se enredou no tipo de comentário vulgarizado pelas missas de opinião televisivas, Juan Gabriel Vásquez foi das mais notáveis exceções. O colombiano foi fiel ao seu princípio de que a função do escritor é transmitir conhecimento, trazer mundo à página como a um auditório.

A violência no seu país, os equívocos que a História nunca chega a sanar e as zonas de sombra de onde emergem os fantasmas do passado, esse é o terreno a que Vásquez dá formas muito concretas no seu quinto e mais recente romance, “A Forma das Ruínas” (Alfaguara). O livro é um prodígio na sua elegante complexidade narrativa, na forma como a ficção engole aspetos poderosos da realidade e arrebata o leitor no tipo de tensão que é própria dos grandes policiais, mas isto enquanto vai lidando com os contornos de uma investigação a um assassinato de um político que teve maior impacto na Colômbia do que o de Kennedy teve nos EUA. Começar a ler este livro de quase 600 páginas é ser convidado para uma sala onde se trocam segredos da história mais íntima de um país em tom conspirativo. O romance é impossível de largar, e a cada página o mundo cresce. Não é só a vida de um país que passou as últimas décadas aprisionado por uma guerra de inúmeras camadas, é a própria condição das sociedades sujeitas aos sórdidos esquemas do poder, o paramilitarismo, as guerrilhas, o narcotráfico, todos os obstáculos que enfrentou um país onde, como disse Vásquez noutra entrevista, “ameaçar de morte é quase uma rotina”. Um país que, no entanto, parece estar hoje à beira de conquistar a tão desejada paz.

O que foi necessário para que descobrisse que a sua maneira de contar uma história passa por não se poder discernir a linha que separa realidade e ficção?

A literatura é uma questão de método. Há uma componente irracional que tem que ver com os nossos demónios, com as nossas obsessões, e o trabalho do escritor é encontrar o método adequado para converter esses demónios e essas obsessões numa página escrita. No meu caso, essas obsessões e demónios têm uma relação particular com o encontro entre as histórias públicas, digamos assim, e as vidas privadas dos cidadãos. Trata-se de contar o que se passa nesse lugar de cruzamento onde o público e o privado se mesclam, onde o mundo político e social visita as casas e apartamentos das pessoas, os espaços íntimos das pessoas. A partir daí, a minha tarefa, o que tive de fazer foi descobrir qual era a estratégia para explorar esse lugar na literatura. Isso consegui-o através da leitura de vários autores… Posso mencionar Dostoievski, Conrad, e, na América Latina, Vargas Llosa, Juan Carlos Onetti. Entre os vivos, Philip Roth… Tudo autores que procuraram explorar o impacto que o público teve no privado. É isso o que, através de um longo processo de ensaio e de erro, me levou ao método que define o que são hoje os meus romances.

Há algo com que os seus personagens se debatem, que é o verdadeiro valor da História. E da sua parte parece haver a atribuição ao romance de um papel crítico face a ela, confrontando-a e pondo-a em causa. Para si, o que é o romance enquanto género e qual é a sua função face ao “relato dos vencedores”?

Creio que a História é um grande lugar- -comum, mas é-o justamente porque se torna uma verdade evidente. Isso a que chamamos História é o relato do passado. E todos os relatos têm um narrador. Não há relatos surgidos do nada. E todo o narrador – e é isto que é crucial perceber – tem uma perceção subjetiva, parcial, interesses a proteger. De maneira que, ao mesmo tempo que se deve aceitar a existência de certos acontecimentos, a potência desses acontecimentos de forma incontrovertida, também tem de se aceitar que a narração desses acontecimentos pode fazer-se de muitas maneiras. E algumas delas são mentirosas ou são incompletas. Tem que ver com os interesses dos poderosos quando contam a história. A História acaba por ser contada por todas essas palavras que escrevemos com maiúscula: o Governo, o Estado, as Igrejas, a Religião, o Poder… E, muitas vezes, a versão que contam as pessoas comuns perde-se, não chega aos livros de História. Penso que essa é uma das coisas que a literatura pode compensar.

E quanto ao romance, o que lhe parece que o torna tão relevante enquanto género literário?

O romance, entre as muitas possibilidades que lhe pertencem, pode ser o lugar onde levantamos a mão e dizemos que as coisas não se passaram como as contam. Pode ser o lugar da versão da história que contraria a do poder. Não a versão dos vencedores, mas a dos vencidos. Isso sempre me interessou muito. A versão de Tolstoi das guerras napoleónicas em “Guerra e Paz” não é a versão de um livro de História. E sobretudo não é igual à versão de um livro de História russa ou francesa. É a versão de um romancista, que é provavelmente mais próxima daqueles que não tiveram voz para deixar testemunho da sua experiência. Creio que os romances a que chamamos clássicos fazem isto.

Há um passo curioso neste romance, “A Forma das Ruínas”, um encontro particularmente tenso entre Carballo e a personagem com o seu nome em que aquele levanta os argumentos a favor da tese de que o 11 de Setembro foi um inside job. A sua personagem reage com bastante desprezo. Parece-lhe que não há margem para se discutir a versão oficial do acontecimento histórico que mais repercussões teve desde o início do nosso século?

O romance procura colocar em cena esse conflito que há entre duas maneiras de ver a História. Os quais, toscamente, são divididos entre aqueles que veem todos os episódios da história como o produto de uma conspiração, de uma mão na sombra que manipula todos os fios, aqueles que acreditam que não há nada na História que suceda por casualidade ou acaso, mas que tudo é produto de uma maquinação do poder, e os outros, os que creem que a História tem muito mais relação com o acaso e a casualidade, com o imprevisível e as paixões humanas, que são incontroláveis. Estas duas visões irreconciliáveis do que é a História aparecem no romance. Entendo a história da conspiração como um mecanismo de defesa das sociedades e dos indivíduos. É um mecanismo que surge quando os indivíduos dentro das sociedades se dão conta de que a História é mentirosa, de que nos dá versões incompletas ou falseadas dos acontecimentos. E a teoria da conspiração é uma forma de corrigir essas mentiras, de nos defender contra elas. Mas isso não quer dizer que eu as aceite sempre.

E no caso concreto do 11 de Setembro?

Nunca consegui engolir a tese da conspiração. Parece-me que não há suficientes bases na realidade. Julgo que há explicações dos acontecimentos que nos marcaram e que são consequência da nossa angústia, da nossa dor, mas que não têm qualquer relação com os factos provados, e os factos continuam a ser importantes para mim. De qualquer modo, o que eu penso ou possa opinar enquanto cidadão real não deveria ser relevante para o romance. No romance há um personagem que se chama Juan Gabriel Vásquez que tem muitas opiniões em comum comigo, mas o que importa é o seu encontro com esse outro personagem, Carlos Carballo, e o que sai desse encontro. Julgo que os romances têm essa capacidade maravilhosa de incluir a realidade do seu autor, que neste caso sou eu, e contaminá-la com os poderes da imaginação literária, da imaginação moral, para a obrigar a dizer outras coisas. De forma que os personagens dos meus romances, como este Juan Gabriel Vásquez, passam por muitas coisas pelas quais eu também passei, partilham comigo muitas ideias, como certos rasgos biográficos, mas tudo isso é utilizado no romance para chegar a outras verdades. Não sou eu exatamente esse personagem que surge no romance, mas dessa mistura de realidade e ficção, nessa mistura que eu invento com o que realmente me aconteceu, o livro “A Forma das Ruínas” pode começar a falar de coisas que não poderia de outra maneira.

Sei que, para si, a literatura pode alhear-se da noção sartriana de que deve haver algum engajamento político, mas o que aconteceu para que enquanto autor e, particularmente, como jornalista, tenha assumido uma posição tão marcada, chegando ao ponto do ativismo político?

Sempre acreditei que há duas maneiras praticamente opostas de encarar o mundo, que são as do colunista de opinião e a do romancista. Para mim, são duas maneiras irreconciliáveis entre si de ver o mundo. Porquê? Porque o colunista é alguém que escreve a partir de uma presunção de certeza, está absolutamente seguro de algo. No meu caso, o colunista intervém porque está convencido de que o processo de paz colombiano é válido e deve ir por diante, porque está convencido de que é preciso legalizar o consumo de droga, porque está convencido de qualquer coisa… Já o romancista escreve a partir da incerteza, da dúvida, daquilo que não sabe, do que não conhece. Escrever romances é uma manifestação de incerteza e dúvida diante do mundo, das suas verdades. Isso faz com que um romancista que também escreva colunas de opinião viva uma espécie de esquizofrenia. Fica profundamente dividido nas suas atitudes face ao mundo. Isto é importante porque os meus romances, embora sejam políticos, não fazem política. Os meus romances não defendem uma verdade prévia na política, antes tratam de explorar uma situação que é controvertida e que tem que ver com a situação pública do meu país, mas que é uma situação moral. Trata-se de um conflito moral. Por outro lado, as minhas colunas defendem uma certa ideia política do mundo, defendem a possibilidade de criar um país com certas características políticas.

E os romances, não? 

Não. Mesmo que sejam políticos, que tenham que ver com o mundo político, nunca acreditei na obrigação do escritor de escrever sobre determinados temas, nem, obviamente, de defender determinadas causas nos seus romances. García Márquez dizia que a única obrigação do escritor é escrever bem. Para mim, a coisa não é tão simples. Eu acrescentaria que a obrigação do escritor é revelar algo que não tinha ainda sido revelado. A sua obrigação é construir um espaço – seja o romance, o conto ou o poema – de forma a levar–nos a um lugar ao qual não tenhamos ido antes. Ou seja, dizer algo novo, não ser redundante. A obrigação do romance, como dizia Kundera, é dizer o que só o romance pode dizer. E uma vez mais citando Kundera: a única moral do romance é o conhecimento. É imoral um romance que não acrescenta nada ao conhecimento do que é o ser humano. Tentei que os meus romances, modestamente e na medida das suas possibilidades, acrescentem algo ao que é o nosso conhecimento sobre nós próprios. Essa parece-me ser a única obrigação que se pode exigir legitimamente a um romancista.

Quando prepara um romance como este, há um processo de pesquisa que o antecede, enquanto monta o cenário, ou, à medida que vai avançando, vai fazendo a pesquisa que for necessária?

É um processo muito pouco sensato, pouco económico. Os romances partem sempre de um episódio vital, autobiográfico. Há algo que me acontece, seja uma pessoa que conheço ou uma conversa que tenho, e algo para o que sou despertado e se converte numa curiosidade. Depois é essa curiosidade que, ao longo de muitos anos, se converte numa obsessão, ou naquilo a que o Vargas Llosa chama os demónios. E durante esses anos faço uma pesquisa ou investigação que avança, muitas vezes, um pouco ao acaso. Esbarrando em pessoas por acaso, deparando-me com informação e documentos por acaso, e, ao fim de muitos anos, esses documentos, achados, esses encontros e conversas vão formando parte dessa mesma investigação até que me dê conta de que há um romance nela, e então sento-me a escrevê-lo. No caso de “O Barulho das Coisas ao Cair”, esse processo demorou dez anos, e a escrita do romance outros dois. No de “A Forma das Ruínas” demorou sete anos, e a escrita do romance três. Entre o primeiro impulso, a curiosidade inicial, e o momento em que efetivamente me sento a escrever passam muitos anos, durante os quais a pequena história ou episódio vai sendo enriquecido.

Tem uma noção muito clara do impacto da violência na sociedade colombiana e referiu-se até a uma contabilização de oito milhões de vítimas, entre mortos e pessoas que foram afastadas das suas casas. Mas, na Colômbia, essa devastação parece de algum modo contida nas suas fronteiras, ao passo que, no México, a violência está a extravasar para os EUA e, na Síria, a questão tornou-se uma grave crise regional e de refugiados com um impacto enorme na Europa. Agora que vive na Europa [Barcelona], como encara a questão dos refugiados e a reemergência dos populismos de direita? 

É estranho para mim, que nasci dez anos depois de ter começado a guerra que opôs o governo colombiano às FARC [Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia]… Era uma criança quando começou a guerra entre os cartéis da droga e o Estado colombiano. Cheguei à adolescência e à idade adulta enquanto essa guerra atingia os níveis de violência mais altos. Vivi numa Colômbia marcada pelo fenómeno do paramilitarismo, da violência paramilitar, dos sequestros, do terrorismo e da guerrilha das FARC… É estranho e é muito positivo saber que, neste momento, a Colômbia pode muito bem ser a notícia positiva neste mundo. No mundo há agora um conflito, e possivelmente aquele que se arrastava há mais tempo [meio século], que termina. E vi como isto acontece. Mas ocorre num mundo que está a viver transformações absolutamente impensáveis, de uma maneira que não podíamos prever.

O que pensa que seja específico deste tempo e não tem precedentes no passado?

É esta transformação que vem na sequência das redes sociais, das mentiras mediáticas, dessa distorção terrível que causou na nossa perceção da realidade a utilização dos meios digitais. Agora fala-se muito de Orwell e do “1984”. Creio que isto ocorre de forma justa, mas a verdade é que nunca ninguém teria podido prever a forma exata como os acordos a que tínhamos chegado para viver em democracia, acordos de tolerância, de uma certa ideia do que é a verdade, seriam questionados como está a acontecer. Esta dificuldade profunda para fazer valer a verdade sobre a mentira, a dificuldade para impedir que a desinformação, a calúnia, afetem a nossa vida real. A dificuldade terrível para nos pormos de acordo sobre uma mesma versão da realidade. No século xix, a leitura diária dos jornais representava esse momento em que muitas pessoas muito diferentes numa sociedade se reuniam no mesmo lugar. Graças a isso podiam compartilhar a mesma versão da realidade. Isso acabou, já não temos uma mesma versão da realidade. E isto tem um efeito terrivelmente nocivo para as nossas democracias, porque estas partem da base de que todos temos uma mesma noção do que significa a realidade, daquilo que está a acontecer no mundo. Quando isso se perde, o que pode acontecer depois é sempre muito perigoso. E eu sou muito pessimista.

O que teme que possa vir a suceder?

Venho alertando para o poder negativo das redes sociais desde há uns dez anos. E há uns dez anos era acusado de ser anacrónico, ser um avozinho, estar contra estas coisas porque não as entendia. Hoje penso que estou a ver os efeitos das coisas que me parecia que tiveram o seu germe há uma década, o impacto muito negativo desse mundo na nossa perceção da realidade e, portanto, na possibilidade que temos de tomar decisões políticas acertadas. Não estou otimista. 

No princípio da sua vida adulta foi-lhe diagnosticado erradamente um cancro [ que veio a revelar-se, afinal, uma tuberculose tratável] e durante uns dias viveu com a perspetiva de não lhe restar muito tempo de vida. De que forma isso impactou na sua escrita?

É um episódio do qual não me importo de falar porque já escrevi sobre ele. Está contado de forma muito franca em “A Forma das Ruínas”. Mas só anos depois de ter ocorrido me dei conta de que, de alguma maneira, fora filtrado, aparecendo em todos os meus livros. Em “Historia Secreta de Costaguana” há três linhas em que se menciona algo parecido, apesar de se tratar de um romance que se passa no século xix. Há também um conto meu que explora uma situação similar à que me aconteceu. De maneira que devo aceitar que esse episódio me marcou profundamente. Mas quando aconteceu não o entendi na sua extensão, foi com o tempo que descobri o impacto que tinha tido em mim. Não sei como se relaciona isto com os meus livros, creio que a sua influência surge a um nível mais irracional do que normalmente pensamos. E acho que pode ser perigoso para um escritor tentar enfrentar os seus demónios e fantasmas para tentar explicá-los. Sei que houve alguma coisa em mim que aqueles dias mudaram, seja na minha perceção do mundo, seja no meu modo de escrever. Provavelmente há uma relação entre isso e os motivos que tenho para escrever. Mas não sei bem qual será e até me dá um pouco de medo tentar averiguá-lo.

Antes falava do seu país, agora é o seu país que se torna tema por causa dos seus livros. Que ecos isso tem produzido?

Essa vontade de dar forma às minhas obsessões através da ficção para explorar e explicar o meu país é algo que sempre aceitei de forma muito consciente. Faz parte de uma tradição da qual me sinto muito próximo, uma tradição de certa literatura latino-americana, os romances de Vargas Llosa, alguns de Carlos Fuentes, autores que aceitaram essa tarefa de explorar e explicar o seu país como forma de enriquecer a perceção que se tem dele a partir do estrangeiro. Sempre estive muito consciente dos clichés e lugares-comuns, os estereótipos que dão forma à visão da Colômbia que se tem noutros países. Ainda que não escreva ativamente para esse fim, sempre considerei que uma das consequências positivas dos meus livros pode ser a destruição desses estereótipos, a demonstração de que a vida colombiana é muito mais complexa, muito mais contraditória, intangível, que aquilo que normalmente se transmite na perceção mediática da nossa realidade. À parte isso, a tradição do boom latino-americano também passa por assumir certas responsabilidades como cidadão. Já não as do romancista, mas as do cidadão que tem uma voz nos media e que, portanto, pode contribuir minimamente para um certo debate público para formar um país que nos interesse. Essa outra cara do romancista, que é a do opinador, que participa no debate de ideias, é algo com que não contava quando comecei a escrever romances, mas é uma responsabilidade que aceitei de forma voluntariosa, porque me interessa o debate, quero colaborar com um certo país que trago na cabeça.