«Morreu a aranha que media o tempo», e isto sente-se na falta de nexos evidentes unidos por essa teia que liga numa grande sensibilidade comum aqueles acontecimentos que formam o relevo de cada época. Aquele verso da poeta peruana Blanca Varela, se foi premonitório há decadas, encontrou-se hoje assaltado pelo formigueiro dos nossos dias, e deixou de ser uma visão, transformando-se na mera carcaça de uma sensação atual. Com isto notamos que o mundo hoje não se debruça sobre um mesmo plano, nem tem o ouvido encostado à terra sentindo o transcurso das coisas.
Os jornais não ocupam já um centro, antes parecem exaustos da corrida atrás de um prejuízo que a cada dia só aumenta. E num tempo que exige de tudo a máxima legibilidade, até a transparência, as três mil páginas onde se compila a intervenção de Agustina Bessa-Luís na imprensa escrita ao longo de mais de meio século trazem do passado um olhar vivo que torna mais claro as ruínas do momento presente.
Os três volumes reúnem crónicas, ensaios, alguns contos, vários textos que se enquadram na literatura de viagens, respostas a inquéritos, artigos da mais diversa índole, portanto. Não há organização que permita diagramar um tão vibrante caos, tantos sinais de uma relação expansiva do quotidiano. Agustina surge aqui como a imponente mulher-a-dias que dispensa a cada objeto da sua atenção um hausto vital. Estes textos têm o seu génio ao desbarato, e são exemplos da prodigalidade do intenso fôlego que, não contente com a liberdade imensa dos seus romances, servem uma mais acessível e não menos imponente crónica da sua época. A maioria destes teriam destaque na antologia de qualquer grande autor, mas Agustina pôde dar-se ao luxo de deixar perdidas no pano cru do tempo as flores da sua primavera autónoma. Não falta atualidade a estes textos, e se estavam esquecidos isso talvez se explique por ser humanamente impossível deter todo o universo de uma autora que tanto caminhou e pisava tão fundo à margem da espuma dos dias. De tudo ela retira algum sentido mais pregnante, a superfície serve sempre de espelho para olhar por cima do ombro um território nebuloso e perscrutar manifestações que passam, para a maioria, como invisíveis.
«Excita, incomoda, perturba ou indigna»
São inúmeras as fontes, tantos os jornais aos quais deu a sua colaboração. No prefácio, José António Saraiva tenta mapear a dispersão do tesouro. Mas dessa diacronia, se ressaltam certas fidelidades, o que mais surpreende um leitor que não pôde ir encontrando estes artigos no seu tempo é o facto de nada depois nem na sua sequência ter podido atenuar a ausência de uma intervenção destas nos nossos dias. Como disse Eduardo Lourenço, a simples existência de Agustina, o impacto da sua obra literária – de que não pode absolutamente separar-se estes textos – «excita, incomoda, perturba ou indigna gente da mais vária feição». Ela permanece a mais estonteante presença no nosso universo intelectual pelo grau de improbabilidade, por se tratar de alguém capaz de ir do grão de areia ao cosmos, do regional ao universal num movimento demasiado lesto para o podermos divisar.
Além da sobranceria elegante, do refinamento da prosa, com os seus lugares tão espantosamente luminosos como sombrios, do seu microscópio de nuances, há o humor, os passos estremecedores de uma inteligência que se celebra a si mesma num confronto que não deixa de ser o mais direto na avaliação dos factos mais e menos ordinários que compunham a trama daqueles dias.
Sobressai aqui a crónica como um género marcante, capaz de totalidades, ilustrando perfeitamente aquilo que Eduardo Lourenço tinha já referido a propósito dos romances da autora: «De cada ponto da obra pode partir-se para todos os outros sem que haja um círculo de que cada um seja o centro».
Espantosos exercícios de crítica literária
O estilo de Agustina impõe sempre uma grandeza de respiração que afasta estes textos de tudo o que é mera prosa de efeito, tiradas frivolamente passionais; não há aqui os rascunhos da emoção nem a queda na pura circunstância. Há sim uma consonância inspirada que sobreleva os impulsos do momento. A cultura na vasta abrangência dos seus interesses – desde a literatura às artes plásticas, o cinema e o teatro, com margem para os grandes exercícios de avaliação da natureza humana, dos povos, costumes, etc. – representa a relação de obstáculos que Agustina pôs diante de si mesma. Para ela o verdadeiro horizonte que desperta a acutilância dos sentidos é a dificuldade. Escreve algumas vezes sobre a sua necessidade de buscar os autores que desafiem o seu esforço de compreensão, e nestas páginas deparamo-nos repetidamente com espantosos exercícios de crítica literária, porque nunca o elogio de Agustina significa uma rendição ao objecto. Ela pensa a par com os autores, e os textos vivem num constante diálogo com a obra daqueles autores que neste ou naquele momento prenderam o seu fascínio.
Camilo e Dostoiévski sempre pairam como ascendentes, com a sua influência manejada sem nenhuns complexos. Estão ali em aberto diálogo, plenamente infusos nos movimentos de alma desta escrita, no seu discernimento implacável, nas proezas mortíferas com que objeta e provoca as suaves consciências. Depois, há muitos outros autores que lhe capturam a atenção, comprovando que Agustina nunca foi nem parcimoniosa nem, tão-pouco, sovina com os objectos que lhe despertavam interesse. Sabe-se, de resto, que a sua vaidade passava também pelo requintes materiais. Gostava de jóias e vestidos, existia nesse domínio onde a verdadeira futilidade é ficar confinado a certas ordens de grandeza contra outras tomadas como menores. Tinha algo da porteira que troca fulgurantes impressões com Deus.
Romancista da mortalidade
Uma vez mais, Eduardo Lourenço diz-nos que «essa ‘voz’ que a tudo se sobrepõe, é o tecido que tudo abarca, a respiração ininterrupta de uma imaginação hostil às limitações e aos limites». O ensaísta que caracterizou Agustina como uma neo-romântica destaca o modo como a sua «consciência ávida, imperiosa, se lança ao antigo assalto das realidades profundas, as mesmas que definiram e fascinaram a alma romântica, tornadas apenas mais hostis, enigmáticas, labirínticas». E Lourenço releva ainda o «espaço arcaico onde enraíza» e o «realismo simbólico da visão», colocando-a ao lado de Faulkner pela capacidade de a sua obra beber «como uma esponja a mais efémera substância das coisas reais». Conclui afirmando que Agustina é uma romancista da mortalidade: «Quer dizer, não da banal e exterior fascinação da caducidade, mas do ironizado relevo que só a morte empresta ao que sem ela seria ‘barulho’ apenas sem ‘furor’ algum».
Isto nos leva a dizer como os textos de Agustina saídos em jornais são momentos exemplarmente expressivos de uma música do tempo, uma que nos faz sentir a espessura do drama como certas bandas sonoras ajudam a desencadear a emoção que consegue penetrar níveis mais complexos da realidade. E são particularmente tocantes os textos que dedica a figuras que a comovem. Quando morre um amigo seu, quando ela lhe dedica a sua atenção compungida nalgumas linhas, essa hora fica como encravada em todos os relógios. É como se sobre alguns segundos caísse a consciência da sua imensa relatividade. A memória de Agustina é uma «verdadeira floresta», disse-o também Lourenço, adiantando que nos aparece «tão povoada e imprevisível como a vida, onde nada é esquecido e tudo transfigurado, mundo grave e inesquecível».