‘Não gosto de falar da Casa Pia’

O caso Casa Pia foi um dos momentos mais duros da Presidência de Jorge Sampaio, que impediu o afastamento do procurador Souto Moura.

‘Não gosto de falar da Casa Pia’

Quando, a 9 de maio de 2003, Eduardo Ferro Rodrigues, secretário-geral do PS, telefona ao Presidente da República já o escândalo Casa Pia tinha rebentado. Dias antes da prisão preventiva de Paulo Pedroso, Ferro pede para falar com Sampaio. Magalhães e Silva, amigo e assessor, recorda: “O Ferro foi a casa do Jorge e contou-lhe que soubera que havia averiguações que o abrangiam a ele e ao Pedroso, numa tentativa de inculpação da direção do PS sobre pedofilia e a Casa Pia. Mas era uma história que ainda não tinha os contornos que viria a tomar”.

Quando Paulo Pedroso é preso, Sampaio estava a caminho de Sevilha, acompanhado por Magalhães e Silva, para assistir à final da taça UEFA. Os assessores pedem-lhe para regressar a Lisboa, mas recusa. Chegam a pedir-lhe que volte “para meter esta gente na ordem” num caso que era classificado por adjuntos do Presidente como “a situação mais grave que a democracia está a sofrer depois do 25 de abril”. Sampaio rejeita a sugestão de dar meia volta e segue para a final da taça. Segundo Magalhães e Silva, que atendia o telefone, a resposta foi sempre a mesma: “O Presidente não regressa e se há suspeitas da prática de um crime, parece-me normal que o juiz peça o levantamento da imunidade para que o deputado seja interrogado”.

Sampaio desmente que soubesse antecipadamente do que iria acontecer. Palavras do ex-Presidente: “Se eu tivesse sabido antecipadamente de uma coisa com tamanha gravidade nunca iria a Sevilha ver um jogo de futebol! Repudio totalmente esse tipo de insinuações! A notícia caiu que nem uma bomba em Belém, completamente. Eu nunca poderia intervir numa coisa dessas, seria contra todos os meus princípios”.

Depois da manchete do Expresso que dizia “Ferro consta do processo”, Sampaio reage aquém do que a direção socialista desejaria. “Nesta horas difíceis que estamos a viver”, o PR tem que ser “o garante do regular funcionamento das instituições – de todas, sejam a Assembleia da República, o Governo ou os Tribunais”.

Da biografia consta a nota de Sampaio: “Algumas pessoas do PS esperariam mais, mas eu não podia fazer mais nada dentro dos meus princípios! Não se pode esperar que um Presidente intervenha num processo pendente!”.

E começa aqui o início de um processo que culminará com o corte de relações entre Sampaio e Ferro, que chega a criticar o PR em público. Conta José Pedro Castanheira: “A 29 de junho, Sampaio e Ferro jantam juntos. A conversa é tensa. Ferro recorda a diligência em casa de Sampaio antes da prisão de Paulo Pedroso e critica asperamente o Procurador que é defendido pelo Presidente. Para o secretário-geral do PS ‘tem que haver uma iniciativa qualquer para defender os socialistas’”. Em julho Sampaio tem pelo menos quatro conversas com Souto Moura. “Entendi que tinha o direito de lhe pedir um balanço do processo Casa Pia, porque muito do que se passara, e muito do que se dizia, tinha a ver com as próprias instituições”. Souto Moura refuta a tese da cabala. Sampaio regista nos seus cadernos pessoais: “Todo o processo Casa Pia foi muito desgastante, um momento terrível sobre o qual não gosto de falar. Pôs à prova múltiplos aspetos que têm a ver com a justiça e a separação de poderes, a aplicação do processo penal (…) Pôs também à prova a Presidência da República e a sua esfera de isenção, na medida em que tocava uma pessoa das relações do Presidente e pretendia tocar o partido a que ele pertencia. Pôs ainda à prova o procurador-geral e a confiança que quiseram minar entre ele e o Presidente e a que foi preciso resistir”.