Médico, tradutor de reconhecido mérito (de Jorge Luis Borges, Appolinaire, Matsuo Bashô, Li Po), antologiador, tem vindo a construir uma obra poética capaz de colidir com o espírito dos que toleram mal as impurezas da prosa do mundo e de indispor a crítica literária mais sisuda, necessária, claro, desde que tomada homeopaticamente.
Antes mesmo de dar a público um Plano Para Salvar Veneza (1982) – cidade identificada com um século XX já ferido de morte –, JSB fez a sua estreia em livro com De Manhã Vamos Todos Acordar com uma Pérola no Cu, um título de formulação profética que parecia obedecer a um programa de riqueza distribuída, quando não a um plano de salvação nacional. Aparecido em 1980, devedor de algum surrealismo, é um título ainda hoje embaraçoso para o leitor comum e para nós, nós, “Portugal”, o “tu” a quem o poeta se dirige nesse poema agri-doce que Mário Viegas tornou célebre. Ainda mal teria proferido o Juramento de Hipócrates, já JSB ali diagnosticava um dos grandes males de Portugal: ver-se como passado e como mito, com todos os carregos nostálgicos que daí advêm. Para grandes males, grandes remédios: audácia poética e ironia mordaz derramada sobre o mito dos Descobrimentos enquanto cristalização do esplendor de Portugal, a desencadearem um riso que vinha sublinhar uma evidência já posta em equação por Lautréamont, referido neste livro: “Ride, mas chorai ao mesmo tempo …”.
Não sei se hoje, à vista de um corpo «cheio de pontos negros» e entretanto corrompido por maleitas para as quais parece não haver terapêutica imediata, JSB mantém o desejo de beijar Portugal “muito apaixonadamente na boca”. Admito que sim, que o autor de Porto de Abrigo (2005) continua a prescrever um humor com matizes que vão do divertimento à elegia, ora subtil ora incisivo, e que tem numa secreta ternura o seu reverso e, mais do que isso, o seu complemento, quando não é dela a máscara transparente e por vezes irada.
Ao contrário das rosas bravas de Camilo Pessanha, não floriram por engano as rosas, nada sentimentais e no entanto substancialmente líricas, que marcam presença no terreno textual de JSB, desabrochando com diferentes significados (candura, erotismo de rubores vários) e, por vezes, onde menos se esperaria: “Deixara de acreditar nas ciências tradicionais, desde que se sentara em frente de uma montanha e gritara morango e a montanha lhe devolvera cinquenta alperces, e ele gritava vermelho e a montanha lhe devolvera rosa rosa rosa, uma rosa cada vez mais ténue.” (A Greve dos Controladores de Voo, 1984).
Rosas mas também violetas, hortênsias, tulipas, amores perfeitos e essa “flor carnuda/ Que só se abre/ Com carícias” (“Cinco Visões de uma Vulva”, A Ferida Aberta) merecem a estima literária de um poeta que, atento às coisas da natureza e seu mistério, poetiza e dignifica tudo quanto toca, conferindo lirismo ao que à partida se reputaria rasteiro ou pouco elevado. Não se trata de flores de enfeite, como os seguintes versos se apressam a demonstrar: “Na Primavera ou no verão/ usava sempre sapatos de duas cores/ E glícinias como atacadores”. De resto, JSB tem vindo a dirigir os seus padrões de gosto para o que poderíamos designar por beleza da escassez, em sintonia com o pensamento estético oriental e com a poética do haiku. Assim se entende melhor o título da antologia que recolhe boa parte da sua produção poética: O Poeta Nu (Assírio & Alvim, 2007), aí assumindo, para além da sua costela provocatória, um paradoxal «Strip-tease»: «Quanto mais me dispo/ menos nu/ me sinto».
Depois de se ter revelado um mau profeta (nem pérolas, nem esplendor – outras contas de um longo rosário), um salvador utópico, JSB regressa agora na pele do criador original que nunca deixou de ser, sempre disposto a fazer concessões à ternura. No seu mais recente livro, O Novíssimo Testamento e Outros Poemas, revisita ironicamente o texto bíblico, tomando para si liberdades que são a substância da criação. O poema «Génesis», que trata da formação de um «ramo de rosas», aparecido no instante certo, diz-nos bem quanto pode a criatividade poética e um olhar enternecido face à aridez da ciência e do mundo.
“Para acabar de vez com os direitos humanos/ e restaurar os direitos divinos” – eis a epígrafe que dá o tom ao volume. Bem pode parecer loucura ou falta de juízo, mas, como afirma Nietzsche, um dos autores do panteão de JSB, mesmo na loucura existe razão. À inumanidade, à fria lógica do coração fechado, impermeável ao amor, responde este poeta com as “duas metades” do seu coração, quente, compassivo e solidário, testemunhas de um testamento «escrito com sangue de galinha”, que este novo evangelista à solenidade religiosa prefere a dessacralização, servida por um humor superior – divinal.
Logo no poema de abertura, que dá nome ao volume, uma hábil mescla de motivos e símbolos bíblicos, o cordeiro redentor conhece o seu reverso irónico: o tresmalhado poeta-cordeiro, assumindo a sua discursividade prosaica, munido de ironia feroz e corroído pelo remorso da matança das galinhas que na infância ajudava a degolar, irrisório, quando comparado com o sacrifício bíblico que aqui transita para a esfera do doméstico e do trivial. Ei-lo, balindo e convivendo como pode com um bestiário de capoeira, carregado de intencionalidade irónica («galinhas-da-índia patos perus gansos garnizés»).
Numa postura que lembra Alphonse Allais, quando, na sua determinação de por fim à figura do intermediário, procurava o processo de passar directamente do feno ao queijo sem passar pela vaca, JSB recusa aqui instâncias mediadoras para chegar à fala com Ele, numa dicção que prefere sempre a ironia mordaz à retórica do confronto. Há bocados de maçã que não passam na garganta de um homem. Senão, leiam-se os versos iniciais deste belíssimo “Salmo”: “Não foi por mim que deixaste que te pendurassem na cruz/ […] Ninguém se deixa matar assim para cumprir a vontade do pai/ – Pai Pai faça-te a tua vontade!”. Oscilando entre a insolência e a reza, o poema, a desfechar em súbita reviravolta, faz reverter a raiva impotente pelo arbítrio divino na mais tocante ternura, em nome de valores supremos: “Não foi por mim que tu morreste/ embora eu seja capaz de morrer por ti”.
Deus ora é trazido ao campo dos mortais (e em inesperados e faustosos veículos – “Braga, Cidade Santa”), ora permanece à distância do intocável, fechado no seu mistério. Veja-se o magnífico «Iluminação na Ponte de Leça», um poema que, apoiado pela ironia, sabe articular alto/baixo, sagrado/profano, luz/falso brilho, presença/ausência. E sabe fazer soprar o vento irónico do abandono: «Arranca Pára/ Pára Arranca/ De súbito a tua cara/ a tua barba branca// Em cima dum contentor/ manobrando um guindaste/ Pai Pai porque/ me abandonaste?».
A noção de trânsito importa particularmente neste livro alheio à meditação metafísica (“A Metafísica do Nabo”), até pelo que ela implica de circulação provisória e passageira. Alguns títulos de Outros Poemas são disso um óbvio sinal: “Valsa da Morte” – essa dama majestática sempre atenta as movimentações humanas – , “Em Nome do Pai”, “A Última Morada”, ou, noutro registo, “Semáforo Vermelho”.
JSB escreveu num poema que a única marca que quer deixar é “uma pequena mordedura atrás da orelha”. É pouco-quase-nada, convenhamos, para uma das vozes mais originais da nossa lírica contemporânea.