Este romance de Paula de Sousa Lima, "O Paraíso", foi finalista do já reconhecido Prémio LeYa 2016, mas não será de modo algum o facto mais importante para me fazer estar aqui a tecer algumas breves palavras a seu respeito. Depois de a autora iniciar a sua carreira literária em vários géneros dispersos por revistas e outras publicações da especialidade, ela publicaria em 2007 a sua primeira grande obra de fôlego, intitulada "Crónica dos Senhores do Lenho", todo ele situado numa pequena freguesia açoriana, de São Miguel, firmando nessas páginas, de certo modo, o tema a que agora regressa: a convivência entre os poderes locais e o resto da população, terra-tenentes e Igreja numa estreita convivência e exercendo o domínio absoluto sobre todos os restantes nos seus miseráveis dias de labuta e sobrevivência. Depois de outros dois romances publicados a nível nacional, "Tempo Adiado" (ASA, 2009) e "Os Últimos Dias de Pôncio Pilatos" (Casa das Letras, 2011), a sua presente obra não constitui necessariamente um corte radical com esses temas preferidos, mas por certo nos oferece uma representação da nossa própria humanidade muito mais complexa, ambígua e dramática, sem nunca abandonar uma prosa simultaneamente de um realismo nu e cru, de uma clareza e negrume como se fora um uma pintura em palavras de Caravaggio, o coração humano no seu pior estado de maldade, sofrimento e bondade, ou então tanto o branco como o preto simbolizando a morte.
A palavra recorrente nesta narrativa é precisamente “sanha”, ou seja fúria, ódio, ignorância e prepotência moralista como que guiando o leitor nos meandros de uma pequena comunidade que carrega em si o mundo inteiro, a universalidade do que move e comove o coração humano “em conflito consigo próprio”, como um dia escreveria William Faulkner, esse outro mestre de pequenas geografias e da grande e intemporal condição humana. De bondade e maldade, de vida e morte, uma vez mais, se faz esta grande ficção de Paula de Sousa Lima, ou ainda, como já escrevi noutra parte, a autora regressa aqui a outras e muito antigas questões da humanidade, o amor sereno e o amor proibido, o contínuo desfazer do mito dos nossos supostos brandos costumes, o Velho Testamento (essa fonte inesgotável de todo o nosso ser) como que aqui dramatizado, aliás como sempre o foi na grande literatura ocidental. A autora nasceu em Lisboa, mas cedo viria com os seus pais açorianos para as ilhas. Quando escrevi sobre o seu primeiro romance já aqui referido fiz lembrar a sua existência arquipelágica transfigurada na ficção de então: “…a força das raízes exigiam esta revisitação às geografias sentimentais, essas que cada um de nós, em toda a parte, carrega dentro de si”. Nestas suas obras mais recentes há só uma outra classificação possível – Paula de Sousa Lima pertence a uma nova e grande geração de escritores de língua portuguesa, os que transformam ilhas em continentes e continentes em ilhas do nosso ser liberto ou cercado
Antes de mais, permitam-me recordar algo que me parece fundamental para muitos dessa nova geração de escritores portugueses – o regresso à ruralidade das suas origens, ou então uma vontade artística de ir além da urbanidade globalizada que é agora a sua, e da maioria de nós. Aqui há uns dias, um jornal lisboeta, dizem-me, dedicou uma página inteira e de grande destaque a este fenómeno entre alguns dos nossos ficcionistas e poetas mais recentes que optaram pela chamada “vida no campo”. Creio que foi a grande escritora Eudora Welty que afirmou um dia que preferia construir os imaginários de pequenas cidades ou aldeias no seu sul nativista americano porque só lá poderia ver e reinventar tudo e todos após uma só olhada, numa só e instantânea visão, toda a humanidade concentrada nas suas vidas, nas suas obsessões, nas suas qualidades e modos de ser e estar, que só diferem de uma grande metrópole em quantidade, e nunca na nossa natureza de seres humanos ligados por valores e tradições comuns.
O Paraíso, para mim, é uma dessas representações de uma aldeia isolada algures em Portugal, numa geografia meio incerta, mas que continua a ser não só a mais comum realidade de um país como o nosso, quase todo desertificado para além de duas ou três grandes cidades costeiras, como torna-se noutra suprema metáfora de toda uma realidade ignorada na maior parte da nossa historiografia canónica ou institucionalmente legitimada, o retrato (re)imaginado ou retocado de todo um povo que certa mítica ideológica sempre tentou ignorar ou mistificar, um povo cujos supostos costumes se ficavam pelo ostracismo dos seus vizinhos social e religiosamente heréticos. De certo modo, toda esta narrativa faz-me lembrar o que me contavam os antigos sobre a primitiva Justiça da Noite na minha Ilha Terceira, o moralismo no seu pior e à margem da lei racional, perante o qual qualquer comportamento considerado desviante poderia ser alvo de violência ou até de morte. O título deste inusitado romance tem tanto de irónico como de verdadeiro, ou pelo menos reconhecível. A beleza das terras serranas rodeados de riachos ou recortadas por rios entre a dureza do outro lado do coração humano. A aldeia aqui no centro desta narrativa deita chamas a uma casa e mata e os que lá se encontram por “pecados” de que já figuravam ostensivamente na Bíblia, aqui mais imaginados do que testemunhados, as origens estranhas ou estranhadas de uma velha família luso-francesa irremediavelmente condenada por suposto incesto entre irmãos, que resulta em silêncios cúmplices de todos os outros, ou então numa culpa meio sentida meio hipócrita e sem redenção de um padre e no choro de uma mulher que safaram duas crianças recém-nascidas das chamas iradas, demoníacas, ou da pura animalidade de toda uma comunidade. Dois gémeos de sexo masculino e feminino são assim colocados em orfanatos lisboetas até ao dia, já aos 17 anos de idade, que regressam às sua origens, à sua casa de nascença na aldeia remota e já quase sem memória ou julgamento condenatório, para juntos viverem de novo sobre esse mesmo tecto. Pelo meio, encontramos os mais variados personagens, desde os aleijados e rejeitados dependentes da caridade, aos idiotas e aos mandões credenciados pelo poder comunitário, a mulheres cheias de raiva, infelizes, ou simplesmente as que aceitam a sua condição numa cultura vigiada e sem saída possível.
A prosa de Paula de Sousa Lima consegue um feito pouco comum na nossa ficção actual. Combina linguagens que nos remetem ao século XIX até aos primórdios da nossa modernidade tardia – a narrativa vai desde 1893 a 1910, com o regidício de dom Carlos pelo meio, e toda azáfama sócio-política que leva a Igreja e os seus acólitos ao medo que já adivinhavam com a constituição e ideologia anti-clerical da I República. A narração de O Paraíso é feita por várias vozes, na primeira e terceira pessoas, em discurso directo e indirecto. É um feito narrativo nada fácil de levar a bom termo, e muito menos de manter o leitor atento a todas essas vozes e pontos de vistas. Resulta daqui um retrato quase perfeito de toda uma época, transportando-nos não só para esse passado, como nos obriga a pensar ou a rever o país e a cultura que continuam a dominar a nossa maneira de sermos colectivamente (se bem que falar de “carácter nacional” não é aconselhável, ou sequer honesto, para além de noções patrioteiras), o nosso pensar sobre quem somos e como somos. Essa opção narrativa traz outra questão que continua a ser de inteira preocupação para muitos de nós – a questão da identidade portuguesa num mundo que já não é, mas continua por outras formas e linguagens a ser muito nosso. O Paraíso aqui, uma vez mais, não somos nós e muito menos a sociedade que historicamente nos foi legada – só a beleza do território à espera de quem o mereça.
O romance de Paula de Sousa Lima tem outra vertente temática que perturba e interpela os seus leitores mais atentos. O incesto não é nada de novo entre nós, nem entre outros nas mais dispersas geografias e culturas. É um tema, repita-se, que nos vem desde os mais antigos textos que formam e informam a nossa noção de “moralidade”, do “pecado” e do “castigo”. Nesse sentido, O Paraíso faz o que uma obra arte deve sempre fazer: questionar a nossa própria natureza, as nossas próprias forças e fraquezas, as nossas noções de decência e indecência, a formação ou a deformação do que temos por “família” em comunidade.
Pode a literatura universal estar toda fundamentada e formada por estes questionamentos. Uma autora, tão da nossa geração mais nova, que tem a coragem de a revisitar ou representar merece uma leitura atenta e sem preconceitos ou medos literários de qualquer espécie. De resto, pouco valeria a nossa arte literária se assim não fosse.