“Três semanas antes da viagem, ligou-me e disse-me que adoraria dar-me um abraço”. Yayo Grassi, argentino a viver em Washington, explicou assim o encontro com Franciso que fez correr tinta em 2015. De visita aos Estados Unidos, o Papa concedeu uma audiência a Grassi, seu antigo aluno e amigo de longa data. Grassi aceitou e levou o companheiro. O Papa “não tem medo de ter um amigo gay”, disse Grassi à “ABC News”. “Para ele, o facto de eu ser gay não é diferente de ter olhos azuis.”
Em quatro anos de pontificado, este está longe de ser o único gesto de aproximação de Francisco à comunidade LGBT, mas o episódio viria a estar no centro de uma saga que pareceu um virar de página na posição da Santa Sé em relação aos homossexuais.
A visita aos EUA ficou marcada pelo encontro de Francisco com Kim Davis, uma funcionária do Estado de Kentucky que foi processada e cumpriu pena de prisão por recusar licenças de casamento a casais homossexuais, por objeções religiosas. Tudo poderia fazer sentido, não fosse o Vaticano ter feito um esclarecimento. “O encontro não deve ser considerado uma forma de apoio às suas posições em todos os aspectos particulares e complexos”, disse o porta-voz da Santa Sé Federico Lombardi.
No final da visita papal, a revista “Slate” notava com ironia o facto de o Vaticano ter preferido sublinhar a abertura relativa do Papa à comunidade gay em vez da doutrina oficial da Igreja sobre género e sexualidade. “Aparentemente, o Papa preferia ser visto com uma pessoa porreira que abraça os seus amigos os gays do que um conservador apoiante de Davis”. E, no ano passado, volvidos quatro meses sobre a visita, a “CNN” dava conta de que Francisco tinha substituído o embaixador da Santa Sé nos EUA, Carlo Vigano, o homem que tinha agendado o encontro entre o pontífice e Kim Davis – embora a Santa Sé não tenha reconhecido ser esse o motivo para aceitar a resignação do arcebispo.
Se o gesto ficou, o tempo vai passando e os documentos oficiais da Igreja mantêm as mesmas posições em relação à homossexualidade. E até a primeira afirmação de aparente ruptura já foi devolvida ao seu devido lugar na narrativa mediática dos “statements” do Papa.
“Quem sou eu para julgar?“ Aconteceu pouco depois da entronização, em julho de 2013. Francisco estava à frente da Igreja Católica há quatro meses quando, questionado sobre um lobby gay no Vaticano e padres homossexuais, respondeu: “Se uma pessoa é gay e procura Deus e tem boa vontade, quem sou eu, por caridade, para julgá-la? O Catecismo da Igreja Católica explica isso muito bem. Diz que eles não devem ser discriminados, mas integrados na sociedade”. Se a afirmação foi esta, a ideia de que o Papa assumia que não se devia julgar a homossexualidade, mesmo entre sacerdotes, correu o mundo.
No ano passado, num livro-entrevista (‘O nome de Deus é Misericórdia’), Francisco esclareceu. “Parafraseei de memória o Catecismo da Igreja Católica, no qual se afirma que estas pessoas devem ser tratadas com delicadeza e não se devem marginalizar”, citou a agência Ecclesia.
Tanto dessa vez como quando foi notícia que a exortação apostólica pós-sinodal “Amoris Laetitia” (Alegria do Amor) apelava ao fim de qualquer sinal de “discriminação injusta” de pessoas com tendências homossexuais, a referência citada por Francisco neste documento era a doutrina do Catecismo da Igreja Católica, promulgado por João Paulo II em 1992.
No documento, lê-se a posição da Igreja sobre a homossexualidade, que se mantém inalterada. Os atos homossexuais são considerados “contrários à lei natural”. Um número considerável de homens e mulheres apresenta tendências homossexuais profundamente radicadas, adianta o catecismo, que considera que esta propensão consiste para a maior parte uma “provação”. E descreve como deve ser a relação com a Igreja. “Devem ser acolhidos com respeito, compaixão e delicadeza. Evitar-se-á, em relação a eles, qualquer sinal de discriminação injusta. Estas pessoas são chamadas a realizar na sua vida a vontade de Deus e, se forem cristãs, a unir ao sacrifício da cruz do Senhor as dificuldades que podem encontrar devido à sua condição.”
Outro ponto do catecismo diz que, como qualquer cristão, as pessoas homossexuais são chamadas a ser castas. Nesse sentido, as práticas homossexuais são consideradas “pecados gravemente contrários à castidade”, que o Catecismo da Igreja Católica coloca em pé de igualdade com a masturbação, a fornicação (relações fora do casamento sem ser para procriar) e a pornografia.
Seminaristas gays banidos Embora Francisco tenha um tom bastante menos duro que o do seu antecessor Bento XVI – que ainda antes de ser Papa denunciou uma tentativa de “manipulação da Igreja” por grupos de pressão para que o homossexualismo fosse visto como uma realidade ”perfeitamente inócua, quando não totalmente boa”– 人a doutrina não mudou.
Já em dezembro do ano passado, ficaram também claras as instruções da Santa Sé sobre a homossexualidade na estrutura da Igreja. O documento “O Dom da Vocação Prebisteral”, publicado pela Congregação para o Clero, determina que os seminários e as ordens não podem admitir pessoas com tendências homossexuais.
Ao contrário do que se passa com o clero, não existem diretrizes claras sobre fiéis envolvidos na vida das paróquias. Para o teólogo Joaquim Carreira das Neves, que sublinha não conhecer em detalhe o caso noticiado nos últimos dias em Castanheira de Pera, deve seguir-se o princípio da não “discriminação injusta” que tem salientado o Papa Francisco. O sacerdote sublinha que estas são matérias da “intimidade”, sobre as quais os párocos não se devem intrometer. Ainda assim, Carreira das Neves admite que em meios pequenos pode haver dificuldades em gerir este tipo de situações.