Raul Brandão. A obstinação do génio que criou um drama ingente

Além da homenagem ao autor de “Húmus”, uma série de iniciativas permitem reconhecer a dedicação de um grupo de especialistas que tudo fez para garantir a posteridade de uma das obras capitais do nosso século XX 

Nem sempre as coisas vão mal, nem tudo é ingratidão. E, no ano em que algumas efemérides vincam a indiferença da passagem do tempo sobre a obra de Raul Brandão, só por leviano hábito alguém virá ainda queixar-se de que esta não tem sido alvo de uma muito apreciável fortuna crítica.

A um século e meio do nascimento do escritor, volvidos 100 anos desde a publicação original de “Húmus”, e 90 de “As Ilhas Desconhecidas”, há motivos de regozijo face ao resgate da obra brandoniana após o “eclipse editorial” que sofreu décadas depois da sua morte, em 1930. Além das múltiplas reedições, dos cuidados de fixação textual, tão ou mais significativa é a dedicação exemplar de uma série de especialistas que vêm há décadas, discreta mas solidamente, construindo um impressionante caso a favor da posteridade deste génio português. Contando com o impulso de outros escritores que reconheceram esta influência nas suas obras e se bateram pela sua genealogia, figuras como Vitorino Nemésio, Vergílio Ferreira ou David Mourão-Ferreira, há hoje uma impressionante riqueza de estudos que nos permitem o optimismo de acreditar na enraização profunda deste legado literário na nossa cultura, acabando o seu destino por entrelaçar-se no desta língua. 

É isso, afinal, o que garante a perenidade de uma obra, o modo como se imíscui e influencia o próprio alcance das palavras que usamos, que delimitam a nossa percepção do mundo. Como se lê em “Húmus”: “[N]ão só os sentimentos criam palavras, também as palavras criam sentimentos. As palavras formam uma arquitectura de ferro. São a vida e quase toda a nossa vida – a razão e a essência desta barafunda. É com palavras que construímos o mundo. É com palavras que os mortos se nos impõem. É com palavras, que são apenas sons, que tudo edificamos na vida. Mas agora que os valores mudaram de que nos servem estas palavras? É preciso criar outras, empregar outras, obscuras, terríveis, em carne viva, que traduzem a cólera, o instinto e o espanto.”

Toda a escrita de Raul Brandão é também um programa, um manifesto, nenhuma frase nos chega apenas o sal; é mais provável que puxe a toalha, atire a mesa ao chão, e nos obrigue, se ainda quisermos concluir a refeição, a ir buscar os alimentos com a boca, ao chão.

Formou-se entretanto o consenso de que o sentido de modernidade que esta obra encerra não é menos radical do que aquele que a geração de “Orpheu” concretizou. Persiste ainda a tentação de discutir o grau de desalinho, distorção ou ruptura da obra de Raul Brandão face aos típicos géneros literários, de tal modo que alguns ainda perdem tempo ignorando as próprias linhas em que se cose esta razão, a veemência de uma escrita marcada, toda ela, pelo signo da obsessão, com a crise íntima e existencial do autor a sobrepujar qualquer estratégia romanesca. Não é só em “Húmus” que se sente a todo o momento a ameaça de desagregação da linha narrativa. Já na sua primeira ficção, “História d’um Palhaço” – ou antes “A Vida e o Diário de K. Maurício” –, fica claro que o fragmento sempre foi mais fiel no registo da revelação última a que o autor se dispôs.

Em “Húmus”, dirigindo-se a Deus, pesando as consequências da sua morte, diz-lhe: “Se tu não existes, estou nas mãos da força obstinada e cega. O que me interessava era o espectáculo da minha própria alma, o diálogo dos dias e das noites entre mim e ti, a imensidade temerosa mas viva, de que eu fazia parte.

E agora, reconheço-o, toda a dor resulta de eu criar um universo que não existe. De tu me criares a mim e de eu te criar a ti. (…) Toda a dor resulta deste esforço para a mentira. De eu não me submeter à força desabalada e cega. De eu ter inventado um Mundo maior do que o teu e diferente do teu, para o sobrepor ao mundo caótico, ao mundo atroz. De mentirmos com obstinação até à cova, ao céu e às estrelas. Destas duas criações antagónicas resulta a maior dor humana. Se eu não tivesse criado outra vida imaginária, tu passavas e calcavas-me, tu passavas e esmagavas-me, mas não me cabia em lote a morte e a consciência da morte, a vida e a consciência da vida. Mas criando a mentira trágica sou maior do que tu.”

É claro que Raul Brandão levanta do xadrez dos dias as peças com que depois encena até à exaustão a sua tumultuosa autobiografia íntima. Tem por ali uma gente atravessada, fios de vidas que se enleiam, figuras ou espectros… Os pescadores, os pobres… “Os penantes usados, as cerimónias grotescas, passam-se entre fantasmas e fantasmas, num ciclone de desespero e gritos. Cada boca fala por outras bocas, e a D. Penarícia, coluna de Israel do fel e vinagre, é uma figura tremenda. Todos os dramas têm a mesma assinatura – Shakespeare. As acções vêm dos confins dos séculos e o próprio mal não é um acto individual.”

“A alma de um homem é feita de muitas tentativas doutras almas”, notou Agustina Bessa-Luís num texto a propósito do centenário do nascimento do autor. “A ternura, que é a fonte até dos seus mais vibrantes golpes, da sua aprendizagem da terra, penetra os livros todos de Raul Brandão, densos, fortes, pecadores, honrados. Dizeis-me vós, ó espíritos timoratos e gramaticais, como se pode ser ao mesmo tempo honrado e pecador? A ânsia de conhecer a vida induz muitas vezes a desastres, e estes voltam a alma para redenções e luzes novas.”

Coube assim a uma autora habituada a usar o romance como desculpa para criar o espaço entre o inferno e o céu e perceber, como Brandão, que tantas vezes um se arranca ao outro, como outras nem se distinguem. Agustina não precisou de muito para escolher que frase citar de  forma a ilustrar firmemente o vigor obstinado desta obra: “Uma alma é preciso criá-la e quando está criada – deixá-la”. À citação, ela acrescenta: “Deixá-la, sim, mas para que a tomemos nós os outros, pecadora e honrada, como iniciação da que começamos a formar”.

Em “O Pobre de Pedir” – última ficção do autor e um livro a que se entregou ao longo de três meses, já sentindo a morte visitá-lo, a tirar-lhe medidas –, Brandão escreve isto: “O que na vida há de interessante é o outro que comenta todos os meus actos, é o debate, é a discussão de que saio irritado e engrandecido. É a vida monstruosa, é a árvore monstruosa.” Logo a seguir acrescenta: “Só a discussão existe e nos interessa sob o céu estrelado.”

Se Pessoa reclamou certo pioneirismo ao ter criado “um drama em gente, em vez de actos”, e a heteronímia hoje lhe vale a fixação romântica de um público cada vez mais vasto, fazendo do seu caso um alvo predilecto para os académicos, os investigadores, os biógrafos sensacionalistas, todos quantos enchem o saco daquela obra das mais estapafúrdias teorias, se Pessoa pagou o preço de ter tentado incluir em si as possibilidades da multidão, e hoje tem em seu nome edições tão oportunistas e pindéricas como o recente “Como Fernando Pessoa Pode Mudar a Sua Vida” (Tinta da China), Raul Brandão não foi seviciado nem parece que venha a sê-lo. A sua obra não virá nunca a ter demasiados leitores, a popularidade nunca a fará entornar-se. Se também não cabe nos actos teatrais, esta é uma encenação de juízo final, ela diz-nos que o nosso grande confronto é íntimo, o de nutrir na relação com o mundo uma tal ternura que a alma seja o reflexo onde Deus se abisma.

Depois de ter terminado, na semana passada, a segunda edição do festival literário Húmus, comissariada por Francisco José Viegas, um evento que fez desaguar em Guimarães a companhia mediática que dança para que música for, e não deixa de ter importância na hora de tratar da fanfarra, terminou ontem, no Porto, um colóquio internacional dedicado a Raul Brandão, no qual cerca de trinta especialistas portugueses e estrangeiros procuraram contribuir para a discussão à volta da obra. Maria João Reynaud abriu o colóquio com a conferência “Húmus, Livro de Um Século”. A ela se deve não só a edição crítica desta obra, que o próprio autor considerava a mais importante das que escreveu, mas também um dos mais persistentes esforços na divulgação do génio de Raul Brandão. Outras figuras dignas de louvor pelo seu empenhamento nesta discussão são José Carlos Seabra Pereira, Guilherme de Castilho, Vítor Viçoso e Vasco Rosa, que depois da organização do extenso volume consagrado aos textos dispersos do escritor que a Quetzal publicou em 2013 com o título “A Pedra Ainda Espera Dar Flor”, realizou uma vasta antologia de toda a obra brandoniana e que será publicada em Maio pela editora E-Primatur, sob o título “A Vida e o Sonho – Inéditos, Antologia e Guia de Leitura”.