Hoje não escrevo eu. Reproduzo com pequenas alterações o testemunho de uma mulher que o tornou público no seu círculo de amigos numa rede social com o propósito de ajudar outras pessoas. É também com essa esperança que o faço.
Há cerca de dois anos enchi uma banheira com água e fui despedir-me dos meus filhos. O meu marido só chegaria daí a duas horas, por isso tinha tempo. Sabia tim-tim por tim-tim como seria. As lâminas há muito compradas, guardadas para a sua entrada triunfal. A porta fechada, para que não fossem os meus filhos a encontrar-me. Só faltava assegurar-me que guardariam com eles a mensagem principal: que eu os amava e que não era culpa deles.
Sentei-os no sofá em frente à televisão e fi-los repetir duas vezes comigo: «A mamã gosta muito de mim e aconteça o que acontecer não é culpa minha». O meu filho mais pequeno, então com dois anos, repetiu mecanicamente e continuou a ver os desenhos animados. Desejei ardentemente que não se lembrasse de mim quando crescesse. O meu filho mais velho, de quatro anos, começou a repetir, e de repente parou e perguntou: «Mamã, estiveste a cortar cebola?».
Só me lembro de sair da sala cambaleante, desarmada por aquela ingenuidade imaculada e certeira, e de começar a hiperventilar. Depois não sei o que aconteceu. Duas horas mais tarde, quando o meu marido chegou a casa, os meninos informaram-no que a mamã estava a dormir no chão da cozinha.
Seguiu-se um processo moroso e doloroso de recuperação, internamento, tratamento psicoterapêutico, tanto em Londres, onde vivia, como em Lisboa, onde tinha a minha família. Mas não foi fácil. Recordo-me de me estar a sentir muito melhor – e, no entanto, de cada vez que olhava para uma faca, pensar se a lâmina seria suficientemente afiada. E se se seria mais eficaz cortar os pulsos ou a garganta. E que não me podia esquecer de comprar um amolador, porque o mais desagradável de tudo é querer fazer um corte e a faca estar romba.
Passados alguns meses, a nuvem onde eu estava dissipou-se, o torpor deu lugar à energia, a escuridão à clareza, e passo a passo fui encontrando o meu caminho.
Deixei Londres, regressei a Portugal e inscrevi-me num doutoramento. Ganhei uma bolsa de estudo, tenho um prazer imenso em frequentar as aulas, em escrever artigos, em investigar coisas que há muito me ocupavam a mente mas que sempre tivera de relegar para segundo plano. Fiz novos amigos. Saboreio os momentos com os meus filhos, e emociono-me diariamente quando os vejo a brincar despreocupados.
Aprendi duas grandes lições: a primeira, a da fragilidade. Estamos todos por um fio. Eu, que fui sempre louvada por ser brilhante aluna, profissional de mão cheia, extrovertida e comunicativa, que passei a minha vida a acumular prémios e distinções, que não teria acreditado se há dez anos me tivessem falado em depressão, num momento da minha vida perdi-me.
A segunda lição é, paradoxalmente, a da força. É bem verdade o que dizem: quando olhas para o abismo, o abismo olha para ti. O abismo olhou-me nos olhos e, até ao fim dos meus dias, sei que saberá onde eu estou. Mas também eu o olhei de frente – e venci. E sei hoje que não levará a melhor.
Além disso, duas lições adicionais: empatia e informação. A da empatia traduz-se em não julgar, nunca. Todas as pessoas que vemos podem estar a passar por lutas das quais nós não sabemos rigorosamente nada.
No auge da minha depressão, eu estava a fazer discursos em jantares com empresários em Londres e a participar alegremente em provas de vinhos. Era uma pessoa querida e acarinhada na comunidade e em constante exposição.
Uma noite, em frente ao espelho, peguei numa tesoura e comecei a cortar o cabelo furiosamente, lavada em lágrimas. Cortei o cabelo para não me cortar a mim própria. No dia seguinte, fiz um discurso num jantar inaugural de um networking que tinha criado em Londres. Toda a gente elogiou o meu cabelo. Tenho fotos desse jantar, estou a falar muito direita, arranjada e elegante.
Mas a licão maior de todas, a da informação, é a razão que me leva a escrever este texto. A depressão é uma doença que deve ser levada a sério. É uma doença que mata.
Não é uma tristeza. Não é uma mania de quem tem o estômago cheio e mais nada para fazer. Não é uma tentativa egocêntrica de chamar a atenção. É uma doença que tolhe o corpo, a vontade, o raciocínio, que nos faz pensar as coisas mais absurdas como se fossem evidências.
Para ajudar uma pessoa com depressão, não serve lembrá-la que tem imensa sorte e que há gente que sofre muito mais (saber que há gente a morrer no mundo só faz ficar pior, do género «eu que não estou a morrer e no entanto sofro tanto à mesma, só posso ser uma pessoa má»). Não serve tentar animá-la com passeios e distrações (acabado o passeio, volta a apatia, o choro, a impossibilidade de comunicação).
Para ajudar uma pessoa com depressão só serve convencê-la a procurar um psicoterapeuta. A ajuda especializada é a única maneira de se lidar com uma depressão grave.
Se alguém com depressão me estiver a ler, saiba que é possível sair. Procurem ajuda. Não se deixem intimidar pelo discurso de que só vai ao psicoterapeuta quem é maluquinho.
Quase dois anos depois, posso dizer que sou uma pessoa feliz. Faço o que gosto, amo a minha família, sinto-me no auge das minhas capacidades intelectuais e tenho mil projetos para fazer. Da depressão que tive, ficou-me o muito que aprendi. Graças a ela, conheço-me muito melhor – e, agora, a minha fragilidade caminha de mãos dadas com a minha força.