Quem de longe vê o ar descontraído de Noélia e Paula não adivinharia que estamos apenas a trinta minutos de abrir portas ao público. As duas afastam-se dos respetivos balcões e param a conversar entre a banca que daqui a nada se vai encher de sushi e a dos vinhos, da qual não vão faltar propostas para acompanhar cada prato. «Tudo pronto?». Pergunta retórica para quem está habituado a responder a salas cheias.
As duas mudaram-se de malas e bagagens ou, neste caso, de tachos e panelas, para o Mercado dos Lavradores, no Funchal, onde os habituais atuns de vinte quilos ou os peixe espada de dois metros dão lugar a outras artes. Só por uma noite, o tradicional mercado ganha o nome de “Terroir” para a noite que dita o arranque da Rota das Estrelas, o evento gastronómico que junta chefs de cozinha – a maioria com estrela Michelin – para mostrarem o que de melhor servem nas cozinhas que têm espalhadas um pouco por todo o mundo.
E se este ano Paula tem a companhia feminina de Noélia – e de Claire, que de França traz o melhor da pastelaria – no ano passado era personagem única num mundo masculino.
Neste rácio ainda muito desequilibrado, quisemos saber mais sobre as mulheres que, aos poucos, saem das cozinhas de casa e dos pratos preparados para os jantares do dia-a-dia e começam a ocupar lugar de destaque na alta cozinha. Juntamos as três chefs para uma conversa sobre ser mulheres, família, viagens e, claro, comida. Senhoras e senhores: Paula Peliteiro, Noélia e Claire Verneil.
Paula Peliteiro
50 anos
Proprietária do restaurante
Sra. Peliteiro, Esposende
Pesquisar por “Paula Peliteiro” no Google, não resulta numa lista vasta de resultados. O restaurante, esse, parece uma extensão da dona. “Sra. Peliteiro” aparece pouco e sempre associado a palavras como «discreto» e «familiar».
«Fico muito no meu canto, sou muito reservada», admite Paula, quase como que a justificar-se. O tom de voz e a gargalhada fácil não o diriam, mas a chef acredita que quem prova os seus pratos nota também o seu outro lado. «Ao mesmo tempo sou exuberante, gosto de cores, de sabores, algo que marque a diferença».
No restaurante que tem aberto em Esposende desde o ano passado – e que funciona como substituto do que tinha em Fão desde 2011 -, encontra-se o que de mais tradicional Portugal tem, como bacalhau, lampreia e leitão, mas ao lado do exotismo de uma moqueca, uma tajine ou um filet mignon. «Não gosto de rotinas e acho que isso se nota na carta», comenta. A uma constante procura por coisas novas junta-se um passado a estudar artes e que lhe deu um gosto especial pela estética e a cor. Sim, porque apesar de agora ser um dos nomes fortes da cozinha do norte do país, o passado foi feito bem longe das panelas. Formada em artes e com mestrado em pedagogia, o gosto pela cozinha ficava-se apenas pelas jantaradas com amigos. Só quando se mudou para o Brasil com o marido, onde viveram onze anos, é que pensou: «É isso, vou abrir um restaurante!»
Aproveitou o gosto natural dos brasileiros por sanduíches, batatas fritas e molho para abrir o “Porto das Francesinhas”, com cozinha aberta até a meia-noite, transformando a salas em pistas para o baile dançante até às seis da manhã.
Habituou-se facilmente ao sucesso e, quando decidiram voltar para Portugal, a vida ligada às artes plásticas já não lhe enchia as medidas. Sem a facilidade de ter duas empregadas internas como acontecia quando vivia no Brasil, esperou que os filhos saíssem da adolescência – «agora acho que já não se metem na droga», brinca – para abrir o seu primeiro restaurante em Portugal.
Se em João Pessoa, no nordeste, a francesinha era novidade, em Famalicão isso já não acontece. Criou uma carta de raiz e diminuiu então os 200 lugares do Brasil para um espaço que leva no máximo 90 pessoas, criando assim um espaço que consegue ser quase um prolongamento de sua casa. «Mais não seja pela quantidade de horas que passo lá», ironiza. Aliás, o negócio da restauração saltou uma geração na família, porque os pais de Paula não quiseram herdar um negócio de família. «O meu pai dizia que era uma prisão, e é mesmo», admite. Mas os dois breves segundos de desalento acabam assim que começa a falar do menu que, apesar de ter pratos obrigatórios, muda à vontade do freguês. «Se um cliente quer organizar um almoço de família com arroz de cabidela, eu faço», mesmo que não esteja na ementa. «Sempre me irritou ir a um restaurante que não pudesse mudar batatas por legumes ou que me mandassem embora porque a cozinha fechava às 23h, mesmo com gente lá dentro». É por isso que um dia de verão na “Sra. Peliteiro” começa às 10h e só acaba à meia-noite, sem horário fixo de almoço e jantar. «O pior de tudo? é que eu estou sempre lá». A dificuldade em delegar faz com que, além da cozinha, assuma funções de sala, relações públicas e até contabilidade. «Para estar na Madeira estes dias, por exemplo, tive que fechar. Olhe, é da maneira que dou folga aos empregados».
A vontade do filho em entrar no negócio dá-lhe a segurança de que tudo o que construiu não se fica pela sua geração e permite-lhe pensar em expansão, algo que acredita não ter feito ainda por causa da família. «Este é um negócio que rouba as noites, rouba fins de semana e não haja dúvida de que o homem tem mais facilidade em abdicar desses momentos em família», admite. Talvez por isso, no ano passado, era a única representante feminina da Rota das Estrelas. «Este ano, pelo menos, tenho companhia», exclama, apontando com o olhar para a banca da frente, onde Noélia já divide em pequenos pratos a cataplana que serve de Meca a quem ruma ao Algarve.
Noélia
45 anos
Proprietária do restaurante “Noélia e Jerónimo”, em Cabanas de Tavira
«Arroz de limão com robalo e amêijoas». Para muitos, basta ouvir a conjugação destas quatro palavras mágicas para rumar a sul e só parar no último restaurante do paredão de Cabanas de Tavira. É no “Noélia e Jerónimo” que este prato é rei, mesmo que nesta monarquia a escolha das especialidades seja bem democrática. Afinal, a votos estão iguarias como as pataniscas de polvo com arroz de coentros, canja de conquilhas e polvo trapalhão com batata doce. Mas foi a cataplana de peixe e marisco que teve ordem de soltura do restaurante e voou até ao Funchal, para servir de exemplo do que se serve num restaurante para o qual, no Verão, a fila de espera chega a ser de um mês. «Há dias que são uma loucura», admite Noélia, lamentando apenas que a azáfama não lhe permita sair da cozinha para falar com quem está a encher a sala. «Sempre foi um hábito meu e talvez esse contacto próximo com os clientes tenha feito a diferença», admite.
Noélia não consegue identificar o momento em que a sua cozinha se tornou um marco nacional e muito menos a altura em que passou de cozinheira a chef. «Aconteceu simplesmente», há uns seis ou oito anos, não consegue precisar. Sem truques na manga nem segredos por desvendar, Noélia acredita que o reconhecimento alia-se ao carinho que os clientes sentem por si. «Vão lá todos os anos, há muito tempo. Dão muito valor ao me trabalho e percebem que tem sido a entrega de uma vida».
E é mesmo, até porque há 31 anos que Noélia domina aquela cozinha, mesmo que inicialmente os pratos se ficassem pelas pizzas e tostas. «Mesmo aí inovei e fazia as melhores tostas da região. Até uma vegetariana cheguei a criar», conta, lembrando o espaço – atualmente ocupado pelo seu restaurante – onde aos 14 anos começou a dar azo a um gosto que transformou em saber através de muito estudo. Não tem cursos de cozinha, mas não há folga que não seja passada a estudar. «Acordo com livros, deito-me com livros, passo o tempo livre a conhecer restaurantes. Enfim, não consigo – nem quero – parar de aprender».
As propostas para parcerias, sociedades e para abrir um restaurante em Lisboa têm sido muitas «e tentadoras», garante. «Mas foi exatamente quando elas apareceram que percebi que quero ficar no meu cantinho, a fazer os outros felizes com a minha comida».
Claire Verneil
42 anos
Chefe consultora
Claire costumava pegar no que sobrava da massa que a avó usava para fazer tartes para criar as suas próprias sobremesas. «E ela dizia sempre que estavam maravilhosas, mesmo quando era quase impossível comê-las», garante. Começou em família, mas a verdade é que nunca faltou público para o que ao longo dos anos foi saindo das mãos – e da imaginação – de Claire.
A cozinha era um prazer e a pastelaria um escape. Advogada criminal de profissão, era-lhe difícil chegar a casa e desligar completamente dos casos que seguia. «Mas às onze da noite não há ginásios abertos para descarregar energias, não é? Então punha-me a cozinhar». Destas noites em claro saíam pequenos-almoços e lanches para amigos e famílias. «Eles eram os que mais usufruíam deste meu stress. Andavam super felizes», brinca.
Apesar de viver numa casa onde tudo girava em torno da comida, nunca ninguém pensou sequer fazer disso profissão. «Na minha família toda a gente é médica, advogado ou engenheiro, profissões com um mínimo de oito anos de formação». Claire seguiu as pisadas que via como naturais, estudou direito, exercia-o com toda a dedicação, até ao dia em que decidiu fazer a vontade aos amigos e inscrever-se no Masterchef de onde só saiu, não com o prémio final, mas com a certeza de que as suas sobremesas não se podiam ficar apenas boca de conhecidos.
Direcionou a rigidez do trabalho como advogada para a pastelaria e fez daquilo o seu projeto de vida. «Foi como se tivesse a tirar um mestrado». Estudou, experimentou, estudou mais, experimentou ainda mais. Até ao dia em que surgiu o convite para preparar um lanche no conceituado hotel Fairmont Monte Carlo. «Pelos vistos, as senhoras gostaram tanto que o chef perguntou se não queria participar nesse chá das cinco mais vezes». Ainda a trabalhar como advogada explicou que era impossível conciliar as duas coisas e que, se a queriam, tinha que ser a sério. E assim foi.
Apesar de profissões totalmente distintas, Claire garante que ainda são muitas as noites que chega a casa em stress. «A diferença é que enquanto advogada passava o dia a lidar com o que de negativo as pessoas tinham na sua vida, agora o meu trabalho está sempre ligado a festas e coisas dignas de celebração».
Para esta festa, Claire trouxe um exemplo daquilo que mais gosta de fazer: misturar o tradicional com a inovação de uma cozinha mais leve e com novas exigências – menos calóricas – e que responda a intolerâncias alimentares. Vai daí que ao arroz doce tradicional tenha juntado um molho de maracujá, «que corta o doce e, além disso, estamos na Madeira, temos que aproveitar esta fruta maravilhosa». Enquanto vai esvaziando o saco de pasteleiro ainda cheio da polpa, Fátima, a subchefe, dá o toque final com umas pétalas de flores comestíveis. Nesta bancada feita de mulheres não existe um empoderamento gratuito do sexo feminino. «Aliás, foram sempre mulheres a dificultar-me a vida na cozinha», lembra. Mas sem ressentimentos, Claire acredita que, daqui a nada, as bancas da Rota das Estrelas vão estar equilibradas. «Nós estamos a chegar lá, de forma muito discreta, mas estamos».