Há duas velocidades no mercado dos livros. Uma veloz, em linha com os tempos, a outra tão lenta que, de fora, a sensação que dá é a de ver a erva crescer. Velha como o mundo, desta podem ver-se as eras em sucessão, civilizações erguerem-se num grito e desfalecerem num soluço, cada uma legando à seguinte as conquistas do seu engenho e espírito. Em contraste, a primeira nem ler sabe. Está focada no lucro, nas variações trimestrais, tem metas e objectivos a alcançar, e tantas vezes responde perante um concelho de accionistas, com expectativas de ver o retorno sobre o seu investimento.
No virar do século, vingaram no sector do livro estas urgências. Houve esforços de minimização de custos, que, encorajados pela ideologia da crise, prometeram grandes vantagens com esquemas de integração vertical, havendo hoje grupos que, depois de adquirirem as editoras independentes e os seus catálogos, diluíram a importância do editor, e entregaram os seus poderes a gestores, apoiados por departamentos de comunicação e marketing, detendo as gráficas onde os livros são impressos até às cadeias de livrarias espalhadas pelo país.
Gigantes ocuparam e batem-se por um território que perdeu a diversidade e se viu aplanado; triunfou a anemia empresarial face à truculência das ruas e bairros em que a luta era feita por putos com fisgas. Então valia mais a pontaria que a força. Na altura, os grandes escritores nem piaram, iludidos com a perspectiva de se verem sentados no ombro destes gigantes que os elevariam a novas alturas. Hoje, todos se queixam do rumo que o negócio dos livros impôs. A lógica de promoção, dos fenómenos passageiros que é preciso espremer o mais depressa possível, está de costas voltadas para os valores de afirmação crítica e do prestígio literário. A imprensa abandonou a crítica para se deixar funcionalizar pelas campanhas de promoção. O plano inclinou-se vertiginosamente para tudo o que são tendências da estação. A moda triunfou em toda a linha.
Face a este cenário o que resta? Algumas aldeias remotas, onde um punhado de gauleses resiste até à última. E se quisermos levar adiante a metáfora, recorrendo ao universo que serviu de base à criação de Albert Uderzo e René Goscinny, o nosso mais provável candidato ao papel de Astérix teria de ser José Pinho. Se fosse uma figura mais redonda e graúda, a solução era virarmo-nos para o Obélix. Mas, de facto, Pinho tem mais do pequenote. Tem a inteligência, um olhar penetrante, azul, e mesmo se não é alto, os seus gestos dão-lhe dimensão; a vivacidade convence-nos depressa de que não terá muita dificuldade em mover-se numa zaragata, encher as trombas de uns romanos. Há de resto um ou outro episódio que circulam no meio como rumores, e que o próprio nos confirma, que não são destituídos de verdade. Estes atestam a sua coragem física, um temperamento que não precisa de poções mágicas para repor uma injustiça ao estalo. Foi o que aconteceu aquando da saída da Ler Devagar da Fábrica Braço de Prata. O projecto em que Pinho esteve envolvido com Nuno Nabais acabou mal.
Depois de ter entrado, a título pessoal, com um investimento de 50 mil euros para as obras que dotaram o espaço de condições para se dar a conhecer ao público como hoje acontece, o livreiro revela que Nabais, que não tinha dinheiro para investir mas tinha em seu nome o contrato de comodato do espaço, foi sempre menos do que sério com as contas e Pinho só conseguiu recuperar 20 mil euros. «Comecei a ficar farto daquilo, a perceber que nunca mais ia recuperar o dinheiro». Na última conversa, Pinho disse a Nabais: «Vou-me embora que já não aguento mais, mas o Nuno fica a dever-me 30 mil euros. A não ser que o Nuno pense que lhe devo alguma coisa?» A resposta do outro: «Penso.» « Peguei na mesa, empurrei-a contra ele. Atirei-o ao chão, dei a volta, dei-lhe pontapés na cabeça, no corpo, em todo o lado, e nunca mais lá fui.» Assim, tirou a sua satisfação, e o assunto ficou arrumado até hoje, como faziam os putos, que defendiam a honra no bairro.
Em comum com Obélix, Pinho tem um acontecimento fortuito na sua vida e que se pode comparar à queda daquele personagem no caldeirão do druida Panoramix. O livreiro que há semanas tomou conta da mais bela livraria de Lisboa, a histórica Ferin, em pleno Chiado, e à qual pretende dar um novo rumo – fazendo dela a mais generalista das livrarias do país e dotando-a de uma programação cultural intensa –, e que tinha já a Ler Devagar na Lx Factory, além de outras nove livrarias em Óbidos, teve a sua queda no caldeirão, não de uma poção mágica mas do desafogo económico há cerca de duas décadas.Trabalhava então numa agência de uma multinacional norte-americana, a WPP, um grande grupo de comunicação. A agência era especializada em gestão de dados, internet e promoções, e José Pinho tinha uma situação estável, um bom salário, mas tinha também já outros interesses que o moviam mais. «Editava uma revista com um amigo meu, que era quem tratava dos textos. Chamava-se Devagar, conta ao Sol. «Era editada quando eu tinha dinheiro, e era eu quem, nas minhas férias, tratava da distribuição. Pegava no carro e distribuía por todo lado, indo até a Espanha e França. Cheguei a pôr a revista à venda na Fnac de Paris».
Com a folga económica que lhe permitiu o emprego, fundou a Ler Devagar no Bairro Alto em 1999, e um tempo depois pediu a demissão, recebendo uma compensação choruda. O que aconteceu por essa altura é aquilo a que chama o seu «acaso mágico». Continuou a trabalhar na agência como consultor, em part time. Ainda esteve três anos na empresa, e nos últimos dois voltou a ser integrado nos quadros, sendo promovido a director-geral. Ora, foi esta situação fortuita que, segundo Pinho, possibilitou os seus «devaneios» no mundo dos livros.
Este Astérix português não está sozinho, é apenas o rosto mais vísivel de toda uma aldeia que conta não apenas com portugueses, espanhóis, mas também com franceses e até norte-americanos. É díficil fazer um resumo de todas as actividades que tem desenvolvido a cooperativa a que Pinho preside. Chama-se Sociedade Anónima. Tem cento e tal accionistas, sendo ele o maioritário, com 62% das acções. O capital social, que inicialmente era de 10 mil euros, ronda hoje os 400 mil, e além das livrarias de que já falámos, o grupo fundou a Nouvellle Librairie Française, em Lisboa, mas desta apenas detém hoje cerca de 40% das acções.
Acontece que, nos últimos anos, e perante a crise no sector livreiro, Pinho fez a si mesmo o desafio de, por cada livraria que fechasse, tentar compensá-lo, abrindo duas. É um objectivo insano, mas ele reconhece que o seu percurso é o de um louco. Não um louco como os gauleses dizem que são loucos os romanos, não um megalómano mas um romântico. Quem quer que trabalhe hoje seriamente no sector dos livros sabe que, ou se fazem compromissos com o tal plano inclinado, ou a tarefa passa a ser a de resistir. Vencer não passa nestes dias por conquistar terreno ao império romano mas antes por não ceder um mílimetro aos seus avanços.
Pinho explica que os accionistas da tal Sociedade Anónima, que está por trás da marca Ler Devagar, é um grupo de amigos que sabem que nunca verão qualquer retorno do seu investimento. Só têm um privilégio, que Pinho adianta logo que não é nada de especial: 10% de desconto nas livrarias do grupo. Algo que a Fnac e a Bertand, como tantas outras livrarias também oferecem aos seus clientes. Aquilo que os accionistas partilham é um pouco desta saúde dos loucos, participando num projecto que tem defendido as aldeias que definem os limites do tal império.
O livreiro conta que, ainda antes da Ler Devagar, o seu primeiro devaneio foi ter-se tornado director de um escola. Isto há quarenta anos. Continua envolvido na direcção até hoje. Como é que isto aconteceu? «Tinha filhos lá», conta Pinho. «Aquilo é uma associação de pais, uma IPSS, e na altura, apesar de ter apoios, a escola tinha pouco dinheiro, e a direcção convidava os pais a irem pintar a escola. Os que iam pintar, nas eleições seguintes, eram sempre convidados a fazer parte da direcção da escola, porque nunca havia gente para a direcção. Foi assim que entrei. Também foi assim que fui conhecendo outras pessoas, fazendo amizades que resistiram, e mais tarde estes amigos foram chamados a fazer parte deste outro projecto. Não é um circuito fechado, mas é um círculo de amigos.» Adianta que, embora não esteja relacionada com a Sociedade Anónima, muitos dos outros directores são também membros desta. E aqui está o ponto que marca a diferença nas aventuras em que Pinho se mete: ele arrasta atrás de si os amigos. Lembra que tudo começou com um grupo que se reunia nas férias na Bordeira – freguesia do concelho de Aljezur. Falando com Pinho, é fácil perceber como tantos o seguiram. A sua energia é infecciosa. Lembra que tudo só é possível porque estas pessoas, tal como ele, dão o seu trabalho sem obter remuneração.
Hoje a Ler Devagar, além destes accionistas, tem visto crescer o número de funcionários. Pinho conta que no jantar de Ano Novo eram já 27. Depois de terem tido já um corte, para cerca de metade, nas verbas que a autarquia conseguiu destinar para a segunda edição do Folio – Festival Literário Internacional de Óbidos, este ano tiveram de recorrer a outros parceiros, tendo o financiamento público sido novamente cortado. Lembre-se que na primeira edição, o Folio se afirmou de imediato como o maior festival no género, tendo contado com cerca de 600 mil euros no bolo do seu orçamento. Entretanto, e dados os cortes, tanto José Eduardo Agualusa como Anabela Mota Ribeiro já não estão entre os curadores da terceira edição. José Pinho assumiu as suas funções e espera agora contar com o apoio das editoras para tornar o festival ainda mais diverso e representativo.
O livreiro admite que nos últimos anos, para quem olha de fora, a Ler Devagar parece ter-se tornado um grande consórcio, mas esclarece que todas as livrarias foram feitas com um custo mínimo, não passando de micro-empresas. Se impressionam pela imponência e beleza dos próprios edifícios, estando entre as mais belas livrarias do país, esclarece que os proventos do negócio continuam a ser parcos. Projecta que este ano a actividade de todas elas – excluindo a Nouvelle Librairie Française – alcance o milhão de euros. A evolução tem sido positiva, e diz que só na Lx Factory, houve um crescimento na venda dos livros de 27% em 2016 face ao ano anterior. Em Óbidos as coisas também estão a correr bem, e espera que este ano comece a recuperar o investimento. Mas o ponto onde a Ler Devagar verdadeiramente se distingue das outras livrarias é o facto de ser uma livraria de fundos. Esta «tem, indiscutivelmente, o maior fundo livreiro em Portugal. Todas as outras livrarias juntas, incluindo Fnac e Bertrand, não têm metade dos títulos que nós temos. Isso já é qualquer coisa». E adianta: «Na Ler Devagar, mais de 90% dos livros são nossos. Na maioria das livrarias hoje nem 0,9% dos livros são deles. É tudo consignado. Não há investimento nenhum. Nós sim. Mas por isso somos uma livraria de fundos e os outros vendem novidades. Nós vendemos os livros que não se vendem e as outras livrarias vendem os que se vendem. Por isso as outras ganham dinheiro e nós andamos aqui, assim, devagarinho, mais ou menos a prestar um serviço público.»