“Deve ter sido o concerto mais fora que esta ilha já viu”, dizia alguém em sotaque açoriano à saída do Raiz Bar, no centro de Ponta Delgada, onde tinha acabado de atuar Yves Tumor. Janelas fechadas para um concerto às escuras e de costas para um público que se separou entre o que saiu, quase todo, e o que ficou, pouco mas extasiado. Yves Tumor como um tremor inteiro, só ele para uns poucos na tarde do último dia do festival que entre terça-feira e sábado voltou a abalar a ilha de São Miguel com data marcada. Catástrofe que bem agradecem as 300 pessoas que chegaram de fora para assistir ao festival, onde se juntaram a outras mil.
Porque ao Tremor dificilmente alguém escapa, nem mesmo um pescador de Rabo de Peixe, a freguesia mais pobre da ilha escolhida para a abertura desta quarta edição, com um concerto das crianças da EsMusica.RP, escola de música de Rabo de Peixe, no estaleiro, e a estreia junto ao mar de “AZ-RAP: Filhos do Vento”, documentário da Red Bull sobre o hip hop açoriano nascido na última edição do festival, que dedicou todo um palco a um movimento que desde Sandro G vivia confinado à internet.
E nesta edição pode não ter havido palco mas houve na mesma #hiphopaçoriano. Na estreia do documentário na freguesia que deu Sandro G levou ao mundo com o sotaque que ele levou para fora dela, mas também nos concertos de Swift Triigga, Fred Cabral e Valério espalhados por Ponta Delgada. E depois o outro, de outras ilhas, Conjunto Corona para o seu primeiro concerto em São Miguel, última atuação do festival depois de uma primeira parte inesperada num dos Tremores na Estufa, concertos surpresa em locais secretos para os quais o público embarca num autocarro, no hangar do aeroporto João Paulo II. Hidromel é esquecer, aqui há de ser um licor verde vindo do Pico que é o que se bebe aqui, com pedidos de “finos” para o Homem do Robe que é como se fala também aqui no meio do Atlântico.
Primeira vez que atuam em São Miguel mas segunda em que dividem um festival com Bonga, por essa hora acabado de atuar no Coliseu Micaelense, cabeça de cartaz do festival, que pode bem dar para “Bongo-Bongomar-Gondomar” e a pergunta sobre se algum dos presentes será de Gondomar. Silêncio, ninguém, mas não importa que aqui as ilhas também podem ser outras. E há de vir ainda La Flama Blanca tanto com Rita Lee como 4 Non Blondes para Donald Trump numa saída em braços para uma noite que parece sem fim para aviões que começam a partir logo às sete.
Último dia de Tremor é mesmo assim, abalo gigante por Ponta Delgada inteira, cidade inundada de gente para concertos em cafés como em postos de correio ou em galerias ou lojas de fatos como a Londrina, já um clássico, para a pergunta sobre se poderá este festival continuar a crescer. “Queremos manter isto como uma coisa especial, tendo em conta a dimensão dos espaços e as propostas que apresentamos”, diz Márcio Laranjeira, da Lovers & Lollypops, que organiza o Tremor com António Pedro Lopes e a agenda cultural das ilhas do grupo oriental Yuzin. E não teríamos outra maneira de ver um concerto de Norberto Lobo a partir de uma piscina de águas férreas de um spa nas Furnas, de assistir à versão acústica de Coelho Radioactivo no palácio da presidência do governo regional ou de subir ao terraço de um hotel para num pôr-do-sol com vista para o mar e os aviões descobrir canções de vacas coloridas e de trágicas histórias de amor entre rapazes e bonecas insufláveis cantadas por Mr. Gallini, projeto a solo de Bruno Monteiro, baterista de Stone Dead, três dos Tremores nas Estufas a que se juntou Corona no aeroporto e um churrasco improvisado num restaurante com concerto.
Porque o tremor não vem sem aviso. Começa devagar, devagarinho. De Rabo de Peixe para o Arquipélago, centro de artes contemporâneas na costa Norte, Ribeira Grande, segunda cidade de São Miguel, para depois seguir para a primeira, Ponta Delgada, ocupada por inteiro em salas, galerias, bares, restaurantes, lojas, armazéns ou um cais ou uma rua. Primeiros dias contemplativos, altura em que bom é ter tempo para mergulhos e passeios e repastos pela ilha, Tremores na Estufa a que nesta edição se veio juntar o Tremor Todo Terreno, ideia que continuará a ser explorada nas próximas edições. Dois trilhos em que com uma banda sonora composta na semana anterior, em residência, Jacco Gardner levava o seu público pela floresta mais densa numa caminhada até ao lugar onde apresentaria um pequeno concerto limitado às 32 pessoas que tinham feito o trilho.
Quando surgiu a ideia de um festival de música em Ponta Delgada, uma cidade que entretanto começou a “acordar e a reconstruir-se atrás das suas paredes”, recorda António Pedro Lopes, o trabalho começou “quase numa perspetiva de investigação da ilha” e na integração dos conteúdos nos lugares. “Como é que a natureza entra num concerto e deixa de ser uma mera paisagem linda e hipnótica e, cada vez mais, como é que a comunidade, não só a artística, pode colaborar neste processo?” Exatamente o que Jacco Gardner neste lugar a que fomos dar com ele a que por aqui se chama Janela do Inferno. Ou Pauliana Valente Pimentel, que durante o festival começou uma residência em São Miguel que há de continuar em julho no festival de artes Walk & Talk, períodos dos quais haverá de sair mais um dos seus projetos fotográficos, para apresentar no ano que vem. Ou Grouper (Liz Harris), que esteve também em residência artística na ilha para a criação de um novo disco.
De Bonga a Yves Tumor. De resto fica a discussão provavelmente sem fim sobre o melhor de todos os concertos. Coisa que o tanto dará para Bonga num concerto que juntou São Miguel inteira como para Corona numa confusão de ilhas junto ao mar ou Yves Tumor, a desfazer o previsível como qualquer boa catástrofe. Ou Circuit des Yeux que logo à segunda noite, no Auditório Luís de Camões, deixou tanta gente a dizer que o festival podia acabar ali. E podíamos ir por aqui adiante num festival com espaço para acolher de tudo.
“Para nós a música é uma cultura, é o que cada artista carrega com um discurso, o que cada artista fala sobre a nossa época, aquilo com que cada artista contribui para uma experiência complexa, atravessada de informação e múltipla”, diz António Pedro Lopes para completar que “nada no Tremor é absoluto”, apenas uma proposta de escolhas e de muitas visões do mundo. “Yves Tumor houve gente que adorou e gente que odiou, mas estes projetos mais extremos também nos interessam e são muito importantes porque de repente há um miúdo daqui que vai ver e a quem aquilo bate e que começa a criar coisas diferentes”, explica Márcio Laranjeira. “Um dos nossos objetivos é potenciar a criação e são coisas que à partida não passariam por este circuito. Também é isso que depois marca e que vai criando memória.”
As jornalistas viajaram aos Açores a convite do Festival Tremor com o apoio da Sata