José Aurélio. Um escultor de muitas declinações

Fechado há quase três anos, o Armazém das Artes reabre com a exposição “A Arca do Alquimista”

Com uma década de existência dedicada às artes e à cultura, o Armazém das Artes – Fundação Cultural, situado no centro histórico de Alcobaça, voltou a abrir portas para acolher uma exposição que reúne dezenas de peças que o autor das gárgulas da Torre do Tombo e do busto de Camões que figura na Assembleia da República realizou ao longo de quase seis décadas de carreira. 

São peças marcantes de um longo e diversificado repertório escultórico que impressiona pela versatilidade, pela oscilação de escalas, pelo inesperado das soluções encontradas para articular, mover, funcionar, mas também pelo forte sentido lúdico e reflexivo. Entre elas figura uma maqueta, feita a pedido de Vasco Graça Moura, na altura comissário-geral para a Comemoração dos Descobrimentos Portugueses, para a Ponta de Sagres. 

O fundador e proprietário do Armazém das Artes, que arrecadou já importantes prémios nacionais e internacionais, diz-se “irmão gémeo do ferro”. Aproximar José Aurélio, na sua estreita relação com os metais – do mais precioso ao mais vulgar – da figura mitológica de Vulcano, deus com génio próprio e obra consumada, e ver na sua oficina uma espécie de antro metalúrgico de que irrompe a criação são tentações irresistíveis. Ambos investiram na arte uma avultada soma de energia e fizeram dela a essência das suas vidas, desdobrando–a numa multiplicidade de formas, sugeridas ao escultor por inspiradas meditações, a Vulcano sobretudo pelas encomendas.

Entre as criações daquele que é por muitos considerado o mais trabalhador dos habitantes do Olimpo contam-se o cetro de Júpiter, o carro do Sol, o escudo de Aquiles (peça que se pode (re)ver na célebre descrição homérica) ou, na mesma linha, as armas do herói da Eneida (que continuam em exposição no livro viii da epopeia latina), mas também outras peças de pequeno formato que fizeram as delícias das divindades femininas. Entre a não menos vasta e variada obra metálica de José Aurélio, dispersa por Portugal e pelo estrangeiro, encontramos esculturas formalmente variadas, joias (e outras alquimias), uma extensa produção medalhística, um sem-número de cata-ventos que ora se encontram estacionados no seu privativo “parque eólico”, ora, cumprindo a sua vocação viajante, se abrem a outros ventos e animam exposições ao ar livre.

Absorvidos um e outro – o deus-ferreiro à boca do vulcão da ilha de Lemnos, o escultor na “ilha” que é a Quinta da Preta, em Alcobaça – em duros combates a que obriga a rigidez metálica, eles engendram, numa humildade oficinal, formas com uma diversidade de escalas, muito significativa no deus, impressionante no escultor: da delicada joia para ser usada pelas deusas dos tempos modernos à grande dimensão do monumento da arte pública. Destaque-se o grandioso “Encontro de Mãos” que é o “Monumento ao Trabalho”, inaugurado em 1996, em Almada, ou, na mesma cidade e no mesmo material, o aço corten, o “Monumento à Paz”, ou ainda a “Porta de Abril” em São Paulo, no Brasil.

Se é sabido que Vulcano nunca receou a ameaça permanente de cortejos ruivos e crepitantes de faúlhas, que fazem dele também o mais tisnado dos deuses, José Aurélio, que “não renega o artesão, o operário ou o engenheiro”, expõe-se ao calor das soldaduras, à agressão das limalhas e de outras asperezas, sobe e desce escadarias, caminha por andaimes, na procura de um equilíbrio algures entre o lúdico e o reflexivo. E, aparentemente sem fadigas, encontra ainda força para os regulares – e amigáveis – combates que, de há muito, vem travando com o vento.

Esta rede de semelhanças apenas serve para melhor significar a diferença. Pese embora a confessada preferência pelos metais e a “estranhíssima afinidade com o ferro”, José Aurélio não é um artista de um só material: madeira, vidro, plástico, pedra ou materiais mais domáveis, como o barro, menos prováveis, como arames, paus e gravetos, ou ainda outros de (re)conhecida – e perturbante – proveniência, como restos de maquinarias várias, de tudo encontra quem visita a sua casa-ateliê que, bem ao contrário da rumorosa morada do deus, transmite uma paz monástica acentuada pela paisagem que a envolve.

Mas uma outra fundamental diferença surge a afastá-los: o sentido lúdico. Quando, ao nascer, Vulcano foi arremessado do Olimpo, terá perdido, além do aprumo das pernas, a criança que o autor das Gárgulas e de “outras esculturas melhores, sem peso e sem medida, que ninguém viu porque só existem na [sua] imaginação”, guarda dentro de si. Talvez por esta razão nunca tivesse sabido o deus combinar na sua arte função e jogo, meditação e divertissement, vetores expressivos que atravessam e sustentam a obra do escultor. O deus, na sua diversidade dimensional e estética, na sua inegável energia criadora, nunca se atreveu a conjugar um verbo que ocupa um lugar destacado na poética da obra de José Aurélio – o verbo brincar e o “sentido do brinquedo-como-coisa- -séria”. A demonstrá-lo estão essas máquinas de animar que são os seus cata-ventos, criação cinética única na paisagem escultórica portuguesa.

Por outro lado, recluso das paredes do seu antro – a remoer as rejeições do passado (e a forjar soluções para as traições do presente) -, também nunca ousou Vulcano ir pelo mundo e andar entre a sucata. José Aurélio é um “achador” de objetos que recolhe d’aqui e d’além na busca de figurações próprias. O seu olhar, fronteira móvel aberta a possibilidades formais, materiais e simbólicas, vai dilatando a obra com que o deus latino nunca sonhou. 

Incapaz de agradar a gregos e a troianos, algumas das suas criações escultóricas têm suscitado as mais desencontradas reações e acendido polémicas que mais não fazem que sublinhar a eficácia da sua função como escultor.