Americanos e norte-coreanos foram protagonistas, nas últimas semanas, de uma acesa troca de acusações, que fez soar os alarmes na região. Entre Washington e Pyongyang voaram ameaças de “ataques preventivos”, de “guerras termonucleares” e do “fim do jogo de paciência”, que tornaram o já muito rarefeito ar da península da Coreia, numa ar totalmente irrespirável.
Se do lado do regime de Kim Jong-un foram realizados mais ensaios nucleares, apresentadas novas armas balísticas, e divulgadas as habituais encenações de propaganda patriótica, por ocasião do 105º aniversário do nascimento de Kim Il-sung – avô do atual líder e fundador da singular experiência comunista da República Popular Democrática da Coreia -, do lado dos EUA de Donald Trump foi revelado que o porta-aviões USS Carl Vinson e várias embarcações da marinha de guerra estavam a caminho das águas coreanas – uma jogada estratégica corroborada pelo próprio presidente, pelo seu assessor de imprensa, Sean Spicer ou pelo responsável pela pasta da Defesa, Jim Mattis -, garantido que o exército norte-americano tinha tido apostos para usar a força contra a Coreia do Norte, em caso de um novo teste nuclear, e enviado para a arqui-inimiga Coreia do Sul, nada mais, nada menos do que o vice-presidente Mike Pence.
Motivos mais que válidos para se temer que um conflito congelado se possa transformar-se em algo mais, e que encheram de preocupação japoneses, sul-coreanos e até os principais aliado dos norte-coreanos, os chineses. Citado pela BBC, um porta-voz do ministério dos Negócios Estrangeiros de Pequim confirmou hoje que a China continua “seriamente preocupada” com a troca de acusações entre norte-coreanos e americanos, e propôs a resolução do problema “através do diálogo e das negociações”. Declarações pouco normais, vindas do lado chinês, mas perfeitamente adequadas a um clima de tensão que é real e palpável.
Acontece que, algumas horas antes, fora sido desmentido um dos principais elementos da equação. Segundo fotografias divulgadas pela imprensa norte-americana, no início da semana, o porta-aviões e a sua “armada”, como lhe chamou Trump, encontravam-se no estreito de Sunda, na Indonésia, e não em águas coreanas. Mais: no dia em que as autoridades anunciaram o destino de frota, a mesma dirigia-se no exato sentido oposto, com o intuito de se juntar à marinha australiana no Oceano Índico, para exercícios conjuntos, numa zona do globo de onde se contam quase cinco mil quilómetros de distância para a península da Coreia.
Ontem à noite um porta-voz do Pentágono informou o “New York Times” que o USS Carl Vinson e a restante frota estavam, agora sim, a dirigir-se para norte, mas não impediu a chuva de críticas, da oposição a Trump e de alguma imprensa norte-americana, à forma como foi gerida a situação. Em conversa com a CBS, o congressista democrata e membro do comité dos serviços de inteligência da Câmara dos Representantes, Adam Schiff, defendeu que caso tenha sido uma estratégia premeditada, tratou-se de uma “provocação perigosa”, uma vez que os EUA “não tinham os seus recursos na região” para responder a uma eventual reação. E não tendo sido intencional, como sugeriu Pence, a partir do Japão, sobra a hipótese de uma comunicação imprecisa entre os vários organismos do exército e da administração Trump.
Para o co-fundador do site 38 North, esta última tese é “bastante desconcertante”. “Se vais ameaçar a Coreia do Norte, tens de garantir que a tua ameaça é credível. Se não (…), apenas vais enfraquecer a tua estratégia política”, defendeu Joel Wit, citado pelo britânico “The Guardian”.
Ao episódio da frota americana que afinal se encontrava bem longe de Pyongyang, há que somar a mais recente peça propagandística do regime de Kim Jong-un. Emitida no passado domingo, mas apenas revelada hoje, passou pela televisão estatal norte-coreana uma recreação de um ataque nuclear contra os Estados Unidos. As imagens mostram um coro, de estilo soviético, a cantar orgulhosamente e, em pano de fundo, é exibido um vídeo numa tela. Nele vê-se um míssil balístico a ser disparado da Coreia do Norte, a atravessar o Pacífico, e a atingir uma cidade não-identificada na costa oeste. A fechar, a bandeira norte-americana arde, para gáudio de uma assistência que aplaude de forma entusiástica.
Se é certo que o ataque nuclear não aconteceu – aquele tipo de propaganda mentirosa faz parte do modus operandi das autoridades norte-coreanas – também o USS Carl Vinson não estava a caminha da Coreia. Duas achas fictícias que foram lançadas para uma fogueira que continua bem inflamada.