Sugerimos o seguinte exercício: imagine-se sentado numa esplanada em pleno Rio de Janeiro. Agora, adivinhe o que vem na bandeja do empregado. Pronto, o calor que se fez sentir esta semana faz a mente voar até ao chope ou à caipirinha. Mas se cingirmos a mente à comida e à memória dos jantares de grupo nos Chimarrões desta vida, o natural é esperar pratos cheios de picanha, pão de queijo, farofa e coxinha. Vá, os mais atentos às novas tendências podem até chegar à tapioca e ao açai, dois imigrantes de luxo que chegaram em força ao mercado português.
Bem longe deste cenário criado pelas novelas brasileiras e dos rodízios de carne assada, estão nomes como tambaqui ou pirarucu. E se falarmos em formigas servidas como aperitivo? Quase que podemos adivinhar o curto compasso de espera até pegar no telefone para encomendar uma pizza.
Mas, convenhamos, um Portugal que tem como petiscos mão de vaca, rabo de boi, tripas e mioleira, não tem sequer direito a negar logo à partida uma ciência que desconhece. Por isso, abramos os horizontes a um Brasil desconhecido.
Amazónia no prato
De cabelo loiro, olhos azuis e apelido alemão, Felipe Schaedler está bem longe do ideal indígena. Mas a verdade é que poucos sabem tanto desta cultura como ele.
Nasceu em Maravilha, Santa Catarina, mas foi a quase quatro mil quilómetros dali que descobriu a sua casa. «Apaixonei-me pela Amazónia e decidi que quero partilhar essa paixão com o mundo», explica. E nada melhor que pegar na sua arte para seguir essa missão, numa viagem que teve paragem em Portugal durante a última edição do ‘Peixe em Lisboa’.
Felipe apresentou duas receitas e falou sobre muitas mais. «Os índios usam poucos ingredientes, mas com eles conseguem chegar a grandes sabores e fazer pratos incríveis», garante. Da banca de gelo escolhe um tambaqui [um peixe comum na bacia amazónica] ie pega nele com as duas mãos. «Esse aqui é o rei». Prova disso é a ementa dos três restaurantes que tem em Manaus e que contam com pratos como ‘caldeirada de costela de tambaqui’, ‘costela de tambaqui frita’, ‘tambaqui com crosta de castanha e banana assada’ ou ‘picadinho de tambaqui’.
Para chegar a esta mistura de sabores, não se ficou pela teoria. «Passei temporadas na selva, com os indígenas”, conta. Mas calma, a realidade já é bem diferente da que temos no imaginário. «Índio usa panela, veste roupa, tem telemóvel. Não é porque ele é índio que parou em 1800», brinca. E a verdade é que, na gastronomia, as técnicas, apesar de ancestrais, podem e devem ser imitadas. «No meu restaurante montei um moquem, uma espécie de grelha que o indígena usa para fazer peixe». Esta técnica permite defumar e desidratar o peixe, o que lhe dá um sabor diferente do que teria se fosse apenas grelhado. «E sem molho, sem nada. Os índios nem usam sal, só usam pimenta».
É esta simplicidade que Felipe defende como primordial na cozinha. «Quase sempre, menos é mais», refere. Por isso é que para o almoço, já em Lisboa, escolheu «um robalo incrível, assado na brasa, que não precisa de mais nada». E já sabe até o que vai provar a seguir. «Bacalhau, claro. Cozido ou assado, na brasa se possível».
Formigas no couvert
Felipe lamenta que Manaus seja uma zona do país ainda pouco explorada. Mas é o tipo de pessoa que não se fica pelo lamento. «Quer fazer esse trabalho através da comida. Comida é cultura, é a melhor forma de traduzir a Amazónia». Se assim é, lançamos um desafio. «A que sabe a Amazónia?». Felipe não hesita. «O sabor é, sem dúvida, fresco e ácido», garante, lembrando o sumo da mandioca fermentada, cujo sabor intenso, «fresco e ácido», lá está, contrasta bem com os peixes de rio que compõem o menu principal desta zona do Brasil.
Mas já que falamos em refeições completas, não podemos deixar escapar as entradas, um item em Felipe fez jus à tradição, por mais estranha que ela possa parecer. «Se os índios comem formiga, nós também podemos comer». O chef garante que «é delicioso» e que apesar da degustação de formigas ter passado por uma fase experimental – na qual servia apenas a pequenos grupos -, agora já tem lugar de destaque na ementa do Banczeiro, um dos seus quatro restaurantes.
Afinal, nada como um ‘formiga saúva e espuma de mandioquinha’ para abrir