Lúcia viu Nossa Senhora, falou com ela e ouviu-a. Jacinta viu-a e ouviu-a, mas não falaram. Francisco só a ouviu. Este é um dos pormenores dos relatos dos pastorinhos nos questionários a que foram submetidos depois de se começar a falar das aparições na Cova da Iria em 1917. Os três ficaram impressionados com a senhora de vestido comprido e manto na cabeça que lhes pediu que rezassem. “É mais bonita que qualquer pessoa que eu visse”, disse Francisco.
Os testemunhos estão reunidos na documentação crítica de Fátima e foram recolhidos antes de Lúcia, décadas mais tarde, já os primos tinham morrido, revelar o “segredo” que lhes fora confiado: a visão do inferno, a conversão da Rússia e o prenúncio de um atentado contra o Papa. As descrições de Francisco e Jacinta, que falaram também menos do que se passou naqueles dias, eram simples. “Onde aparece ela?”, perguntou Francisco Manuel Nunes Formigão, um dos primeiros responsáveis nomeados pela Diocese de Leiria para investigar os acontecimentos de Fátima. “Em cima de uma carrasqueira”, respondeu o rapaz, de nove anos de idade na altura das aparições.
“Aparece de repente ou tu vê-la vir de alguma parte?” “Vejo-a vir do lado onde nasce o sol e colocar-se sobre a carrasqueira.” “Vem devagar ou depressa?” “Vem sempre depressa.” E as mesmas perguntas a Jacinta, de sete anos, “bastante alta para a sua idade, um pouco delgada sem se poder dizer magra, de rosto bem proporcionado, tez morena, modestamente vestida”. “De onde vem a Senhora?” “Vem do céu, do lado do sol.” “E como está vestida?” “Tem um vestido branco, enfeitado a ouro, e na cabeça tem um manto, também branco. Em volta da cintura há uma fita doirada que desce até à orla do vestido.” “Usa botas ou sapatos?” “Não usa botas nem sapatos.” “Então tem só meias?” “Parece que tem meias, mas talvez os pés sejam tão brancos que pareçam trazer meias calçadas.” Perguntavam-lhe pelo fim da guerra e por conversões, receberam de resposta que rezassem. “O que recomendou a Senhora a Lúcia com mais empenho?” “Mandou que rezássemos o terço todos os dias.” “E tu reza-lo?” “Rezo–o todos os dias com o Francisco e a Lúcia.”
É no lugar desse arbusto na Cova da Iria, onde nos anos 20 do século passado surgiria a Capelinha das Aparições e começou a emergir na devoção popular o Santuário de Fátima, que os dois irmãos Marto vão ser canonizados no próximo 13 de maio, no dia em que se assinala o centenário da primeira de seis aparições no verão e outono de 1917.
A decisão do Papa Francisco, depois de ter sido aprovado um segundo “milagre” por intercessão dos pastorinhos – o passo necessário para passarem de beatos a santos segundo as regras da Igreja Católica –, foi conhecida ontem de manhã. Estavam em apreciação outros processos de canonização de 30 sacerdotes brasileiros que chegam a santos por terem sido mártires da Igreja, e de outros três adolescentes mexicanos e dois sacerdotes, um espanhol e outro italiano. Estas canonizações ficaram para 15 de outubro, mas o Papa antecipou a canonização dos pastorinhos, mostrando assim o interesse em estar presente em Fátima na ocasião e numa altura em que a confirmação de que vai falhar o aniversário dos 300 anos da aparição de Nossa Senhora da Aparecida no Brasil, em outubro, gera deceção do outro lado do Atlântico.
Novo plano de festas
Nos últimos dias, o Santuário de Fátima não se descoseu sobre os preparativos em marcha caso fosse anunciada a canonização para o 13 de Maio, como veio a acontecer. Fonte oficial revelou, entretanto, ao i o novo programa.
A visita-relâmpago mantém-se: serão menos de 24 horas em solo português. O Papa aterra na base aérea de Monte Real pelas 16h20 do dia 12 e a despedida está marcada para o mesmo local às 14h45 do dia seguinte. A cerimónia de canonização será no dia 13, na missa que começa às 10h e terminará pelas 12h30.
Ainda de manhã, quando estava apenas marcado um encontro com António Costa e uma visita à Basílica do Rosário, onde estão sepultados os pastorinhos, haverá agora um momento de oração junto aos túmulos. Na procissão de entrada na missa serão apresentadas as relíquias dos pastorinhos (um fragmento de osso e uma madeixa de cabelo), partes do corpo dos santos que serão transportadas pela irmã Ângela Coelho, a responsável pela promoção do processo de canonização dos irmãos.
Estas relíquias ficarão expostas em Fátima. Está prevista também a presença de familiares da criança brasileira cuja cura milagrosa foi reconhecida pelo Vaticano. As novas regras ditam que o processo deve ser confidencial mas, ontem, a Rádio Vaticano adiantou que se trata de uma criança brasileira que sobreviveu a uma queda de sete metros. A criança tinha seis anos na altura do acidente.
De aljustrel para os altares
No rito de canonização será apresentada a biografia dos pastorinhos. Nasceram na aldeia de Aljustrel, em Fátima, ele a 11 de junho de 1908 e ela a 11 de março de 1910. Francisco viria a morrer a 4 de abril de 1919, vítima de gripe pneumónica. Jacinta morreu a 20 de fevereiro de 1920 no Hospital de D. Estefânia, em Lisboa, onde disse ter recebido duas visitas de Nossa Senhora, condenando os luxos e o pecado da carne. A devoção aos pastorinhos fez com que, durante décadas, os fiéis rezassem pela sua intervenção. Foram beatificados a 13 de maio de 2000 por João Paulo ii, que na homilia em Fátima os descreveu como “duas candeias que Deus acendeu para alumiar a humanidade nas suas horas sombrias e inquietas”.
Os fiéis começaram a levar para junto da carrasqueira ofertas que os pastorinhos contaram que a Senhora lhes tinha dito para serem aplicadas em andores e uma capela nova. A ideia de exploração das crianças ou utilização das aparições para promoção do local gerou sempre polémica. A mãe de Lúcia confessou recear que a filha fosse vítima de uma alucinação que cobriria de ridículo a família. Em agosto de 1917 foram tirados dois dias aos pais para serem interrogados. Os irmãos chegam agora aos altares da igreja.