No dia 24 de abril de 2008 estavam 30 graus na base espanhola de Herat, no Afeganistão. Carme Chacón, 37 anos, grávida de sete meses, acabara de passar as últimas 21 horas dentro de um avião da Força Aérea espanhola. Cinco dias antes, o primeiro-ministro José Luis Rodríguez Zapatero tinha-a nomeado ministra da Defesa de Espanha.
«O meu marido e eu fomos ao ginecologista para reconfirmar o que já sabíamos. Estou ótima e o médico disse-me que os riscos da viagem ao Afeganistão eram os mesmos que para o resto do percurso. Quero que esta viagem seja um símbolo de normalidade, um símbolo contra a discriminação que sofrem em Espanha muitas mulheres grávidas, especialmente no mundo laboral». Foi assim que Carme falou à Yo Dona, que acompanhou a viagem da ministra, horas antes de ter passado revista às tropas.
A fotografia do momento conseguiu exatamente os objetivos que Chacón desejava: tornou-se um símbolo da normalidade da gravidez em altos cargos de Estado e fez mais pela igualdade de género do que muitos discursos produzidos ao longo dos tempos.
Voltaria ao Afeganistão mais 17 vezes. «Muitos soldados pensavam que eu não podia fazer o mesmo que um homem e quis demonstrar que nós, mulheres, grávidas ou não, podemos», disse em dezembro de 2015 em entrevista ao La Vanguardia, a mesma onde contou pormenores da sua cardiopatia congénita – «tenho 35 pulsações por minuto» – e revelou que os médicos lhe recomendaram que tivesse uma «vida tranquila» e desaconselharam a maternidade. Recusou uma coisa e outra.
Na sexta-feira, dois dias antes de morrer, deu a sua última entrevista a uma rádio colombiana propriedade da Prisa, a empresa que detém o El País. Carme estava em Miami, para uma conferência onde falou da sua experiência pessoal e política. À Rádio Caracol, voltou a falar do feito histórico que foi ocupar o cargo de primeira mulher ministra da Defesa de Espanha. É preciso «empurrar», defendeu Carme, para que as coisas mudem. «Quando uma pessoa dá um passo em frente, dá-o o género humano inteiro». Ela deu-o. Depois de Carme passar a revista às tropas grávida, várias ministras espanholas e presidentes de regiões autónomas (como Susana Díaz, agora candidata a líder do PSOE, ou a atual ministra da Defesa de Espanha, Dolores de Cospedal ) exerceram cargos políticos enquanto estavam grávidas e o assunto tornou-se cada vez mais normal e menos objeto de notícia.
Catalã, nascida em Esplugues de Lobregat, muito perto de Barcelona, Carme Chacón licenciou-se em Direito na Universidade de Barcelona. O seu currículo académico é impressionante: doutorou-se na Universidade Autónoma de Barcelona e fez vários cursos de pós-graduação em universidades de Manchester, Friburgo, Montreal, Kingston e Québec. Deu aulas de direito constitucional durante 10 anos – entre 1994 e 2004 – na Universidade de Girona. Começou a carreira política na sua terra natal, na Câmara de Esplugues de Llobregat. A partir do ano 2000 foi deputada eleita por Barcelona. Chegou a vice-presidente do congresso em 2004. Em julho de 2007 sai do parlamento para ocupar o cargo de ministra da Habitação no Governo Zapatero. Menos de um ano depois, em abril de 2008, foi nomeada ministra da Defesa, cargo que ocupou até 2011.
Quando Rodríguez Zapatero se retirou da liderança do PSOE, antes das eleições gerais de 2011, Carme Chacón decidiu concorrer à sucessão. Perderia por 22 votos para Alfredo Pérez Rubalcaba – que não conseguiu vencer as eleições, que seriam ganhas por Mariano Rajoy, que continua no poder em Espanha, com um PSOE condenado à irrelevância. Chacón foi casada durante oito anos com Miguel Barroso, pai do seu filho Miquel e secretário de Estado da Comunicação e assessor do Governo Zapatero. Divorciaram-se em julho do ano passado. Meses antes, em abril de 2016, Carme anunciou que não voltaria a ser cabeça-de-lista por Barcelona nas eleições seguintes «por razões políticas». Uma retirada da linha da frente do PSOE, justificada desta maneira por um amigo ao El Mundo em julho de 2016: «Carme está esgotada tanto no plano pessoal como profissional, não quer entrar na batalha política por mais cantos de sirene que surjam, quer mudar totalmente de vida».
A jornalista Lucía Méndez via a retirada de Carme assim: «Carme Chacón tem 45 anos, ainda que a sua idade política seja mais avançada. A deputada viveu várias vidas políticas, sem que tenha conseguido alcançar a plenitude a que aspirava. A plenitude não era outra do que a liderança do PSOE e, eventualmente, a possibilidade de ocupar a Moncloa. O 4 de fevereiro de 2012 marca um antes e depois da sua vida (…) Não se pode voltar atrás no tempo. O mesmo comboio nunca passa duas vezes. Carme sabe que o comboio da liderança do partido não voltará a passar. E, mesmo que passasse, talvez ela já não tivesse forças para o apanhar».
O comboio da vida – o único que não passa mesmo duas vezes – parou na madrugada de domingo.
Publicado originalmente na edição impressa do b,i. de 15 de abril de 2017