Jorge Carrión é um colecionador de livrarias. Nascido em Tarragona em 1976, doutorou-se em Humanidades e trabalha como jornalista e escritor. Viajante experimentado, a primeira coisa que faz quando chega a uma cidade é visitar o museu de arte contemporânea, se o houver, e descobrir as suas livrarias. Só depois vem o resto.
Como relata em Livrarias (ed. Quetzal), que nos leva numa viagem pela história e geografia destes estabelecimentos, Carrión já esteve em livrarias em paragens remotas ou exóticas como a Cidade do Cabo, Ushuaia, Caracas, Cidade da Guatemala, Rio de Janeiro, São Francisco, Xangai, Tóquio, Sydney, Melbourne, Istambul e Tânger, a que se juntam, naturalmente, as de pequenas e grandes cidades europeias. Nalgumas comprou livros, de outras trouxe simplesmente um dos milhares cartões de visita que guarda numa caixa em sua casa, em Barcelona.
Diz que na capital da Catalunha há excelentes livrarias e quase todos os dias, depois de ir buscar os filhos à escola, entra numa próxima do local onde vive.
Se para Jorge Luis Borges o Paraíso era uma biblioteca, para Carrión seria uma livraria.
Conhece o escritor dominicano Junot Diaz?
Sim, claro.
No livro dele É Assim que a Perdes, há uma personagem que diz a outra: ‘És a única pessoa que conheço que consegue passar tanto tempo como eu numa livraria’. Tal como essa personagem, também passa muito tempo em livrarias?
Sim, e percebo muito bem o que ele quer dizer, porque realmente é difícil partilhar esta paixão com o teu par. Já me aconteceu em várias relações ela não entender que eu quisesse passar tanto tempo na livraria. Outro escritor espanhol, Juan Bonilla, conta que o escritor guatemalteco Augusto Monterroso chegava de manhã à Strand, em Nova Iorque, e só saía ao fim da tarde. Era capaz de passar todo o dia na livraria. Eu não chego a esse extremo, mas sim, interessa-me muito a livraria como um espaço que desperta o detetive que há em mim. Quero investigar, analisar, compreender a lógica.
E não o incomoda quando não entende essa lógica?
Pelo contrário, quando não entendo é quando mais gosto. Há livrarias muito fáceis, em que percebes de imediato a sua cartografia, e outras que, pela sua complexidade, provocam uma resistência. Enquanto não entendo a lógica de uma livraria, não me vou embora.
Quando vai a uma livraria num país em que não conhece a língua – na China ou na Turquia, por exemplo – não se sente perdido?
Só me senti realmente perdido em livrarias islâmicas, onde tudo está em árabe e não há uma única imagem nas capas. Mas numa livraria de Tóquio, de Pequim ou de Istambul, onde há uma secção de livros em inglês e os livros têm capas com imagens ou desenhos ou têm a foto do autor, sinto-me orientado. As livrarias criaram uma linguagem internacional que, se estivermos um bocadinho treinados, podemos traduzir, de maneira que me sinto cómodo em 99% das livrarias do mundo.
A livraria Strand, em Nova Iorque, gaba-se de ter quase 30 quilómetros de estantes com livros. A única vez que lá estive acabei por não comprar nada porque, de cada título que me interessava, havia várias edições. Já lhe aconteceu estar em livrarias onde há demasiados livros e não conseguir escolher?
Prefiro livrarias de autor, onde há um livreiro-curador e em que os livros estão selecionados. Esse filtro é muito importante. No século XXI, a livraria-armazém, com muitos livros, como a Strand, faz menos sentido porque para isso temos a internet. Na internet pode-se encontrar o que se deseja mais facilmente. A Strand possui um certo encanto porque tem muitos livros em segunda mão, alguns dos quais pertenceram a escritores, livros com vestígios de quem os leu ou ‘pegadas’. Mas no século XXI faz mais sentido uma livraria pequena, muito selecionada e que defende um cânone literário ou um projeto.
Há um tamanho ideal para uma livraria?
O tamanho depende do livreiro. Há livreiros que se sentem bem com um número reduzido de livros e de autores, e livreiros que preferem abarcar muito mais… Mas se pensarmos nas livrarias mais famosas do mundo, nas que tiveram influência cultural, como a Shakespeare and Company [Paris], como a City Lights [São Francisco], como a Gotham Book Mart [Nova Iorque], como a Rafael Alberti de Madrid, são livrarias de média dimensão, nem muito pequenas nem muito grandes. A livraria muito pequena confunde-se com a tua biblioteca – e uma livraria não pode ter menos livros que a tua biblioteca.
Quando há uma marca autoral muito forte do livreiro não pode resultar daí um conflito com o seu gosto?
Completamente. Mas interessa-me muito esse conflito. Nos anos 20 e 30 do século XX, Adrienne Monnier, com a literatura francesa, e Sylvia Beach, com a literatura norte-americana, defendiam um cânone muito forte: vanguarda, literatura experimental, literatura de alto nível estético. Adrienne Monnier defendia Apollinaire, André Gide, os surrealistas, André Breton, e Sylvia Beach, Hemingway, Joyce, [John] dos Passos, etc. Interessa-me essa ideia de livraria como uma intervenção cultural que provoca um conflito com o teu cânone e te obriga a negociar com a sua proposta. Mas esse tipo de livraria praticamente já não existe. Vemos isso, por exemplo, nas livrarias que têm uma aposta muito forte na poesia. Mas são poucas.
Quando chega a uma livraria dirige-se a alguma secção em particular?
Sim. Interessa-me muito uma secção que normalmente está no início da livraria, a secção sobre aquela cidade. Porque aí encontro informação que me é útil como viajante, isso permite-me descobrir lugares interessantes para visitar. Depois vou à secção de poesia. Evidentemente também tenho curiosidade de ver a secção de literatura espanhola, para saber que autores foram traduzidos e são lidos. Se não conheço a língua vou ver os livros ilustrados, infantis, de fotografia, vou a todas as secções em que os livros tenham imagens.
Porque viaja tanto? É um hobby ou viaja muito em trabalho?
Durante muitos anos trabalhei como freelance e escrevia sobre as viagens que fazia. Depois houve uns tempos em que fui professor de literatura e sempre que podia viajava nas férias ou deixava o trabalho, viajava durante um tempo e voltava a trabalhar. Agora não viajo quase nada, só para apresentar os meus livros, porque tenho família. O meu último livro chama-se Barcelona – Livro das Passagens. É uma viagem por Barcelona, por todos os bairros de Barcelona, porque depois de viajar por todo o mundo e pelas suas livrarias, descobri que podia viajar sem sair da minha própria cidade.
Quando descobriu o prazer de visitar livrarias? Tem boas memórias de infância?
Sim, desde muito pequeno. No bairro onde vivíamos não havia nenhuma livraria e eu passava muito tempo a olhar para o quiosque, a ver os livros de banda desenhada e as revistas. E tenho uma lembrança muito forte – disso não falo no livro – de ir com os meus pais ao supermercado comprar a comida para a semana e ficar na secção da livraria. Depois, quando começo a viajar, aos 20 anos, mais ou menos, sentia-me sempre muito bem nas livrarias. Na capital da Guatemala, que é uma cidade muito dura, sentia-me seguro em certas livrarias, de modo que era aí que procurava refúgio.
Quase como se fosse uma igreja…
Sim. O lugar de segurança que para a minha mãe e para a minha avó era a igreja, para mim é a livraria. A etimologia da palavra latina para religião é ‘re-ligio’, que significa ‘religar’, voltar a, unir, com uma certa experiência. Creio que nesta época de vida passada ao ecrã, ao computador, a livraria é o lugar privilegiado para nos religar com o objeto, com o material. A livraria tem uma dimensão ritual muito acentuada.
Acha que as livrarias estão a ficar cada vez mais parecidas umas com as outras?
Hoje há muitas livrarias, mas penso que podem ser divididas nalgumas tipologias principais. Uma é a livraria de cadeia, que tem um desenho muito homogéneo. Outra é a livraria independente, que também tem uma estética muito própria, com muita madeira, sofás, um aspeto boémio… Depois as livrarias de design ou de museu, que são brancas, diáfanas. Há tendências, mas depois os bons livreiros sabem dar a cada uma o seu próprio toque de originalidade. E muitas vezes sabemos que detrás de uma boa livraria há um bom ateliê de arquitetura. As livrarias são obra de um livreiro e de um arquiteto.
Há alguma livraria onde vá com mais frequência?
Quase todos os dias, depois de ir buscar os meus filhos ao colégio, vou com eles a uma livraria que fica no meu bairro, a Nollegiu. Essa é que tenho mais à mão. Mas tento não perder o contacto com outras que me interessam e sempre que vou a uma cidade nova tento conhecer as suas livrarias. Ainda há um bocadinho fui à Pó dos Livros e trouxe de lá um cartão. Tenho uma caixa com milhares destes cartões de todo o mundo.
Gasta muito dinheiro em livros?
Demasiado. Sou jornalista cultural, por isso as editoras enviam-me muitos livros. Mesmo assim compro muitos. E tenho livros – que são os de que mais gosto – que comprei nas minhas viagens. Formam uma espécie de mapa. Posso reconstituir uma viagem a partir dos livros que comprei.
Tem livros com um significado especial?
Muitos. Por exemplo, tenho guardada com muito carinho uma primeira edição de Respiração Artificial, o romance do escritor argentino Ricardo Piglia, que comprei na livraria La Internacional Argentina, de Buenos Aires. Ainda tem o selo da livraria e a dedicatória que o autor me fez. Outro livro importante é Ver: Amor, de David Grossman, que li em Israel e que deu a ideia para um romance que escrevi. O meu exemplar está muito estragado, porque o levei para o deserto e viajei com ele.
No seu livro fala de todas as livrarias que existiram, que existem e que existirão – o que tem ecos da Biblioteca de Babel de Borges. A Amazon e a Abebooks [plataforma que junta alfarrabistas de todo o planeta] não são quase isso?
Mais do que a Amazon, parece-me que a Babel de Borges é a Google Books, um espaço de leitura infinita que usei muito na documentação de Livrarias.
Compra livros online?
Não. Quando há um livro estrangeiro que queira comprar, peço-o ao meu livreiro, mesmo que seja mais caro. Penso que é importante apoiar os locais físicos, o espaço ritual de que falámos.
Tenho um amigo que costuma dizer: ‘A segunda melhor coisa do mundo é ler livros’. Um dia perguntei-lhe qual era a melhor, e ele respondeu-me: ‘Comprá-los’. Gosta de comprar livros?
Gosto do ato de procurar, de descobrir e evidentemente de comprar. Muitas vezes adquires um livro não pela leitura mas pela promessa ou possibilidade de leitura. E, muitas vezes, aquele livro que desejavas muito comprar não o lês e outro que não desejavas nada compras e lê-lo de imediato. É um mistério saber quando o livro vai ser lido.
Conhece livrarias em todo o mundo. Qual é, para si, a cidade com livrarias mais bonitas?
A quantidade de livrarias de uma cidade é um indício da sua cultura e do seu nível democrático. Cidades como Nova Iorque, Londres ou Paris destacam-se pelo nível das suas livrarias, mas há outras com muitas livrarias boas e que eu desconhecia. Por exemplo, Atenas. Ou Lisboa. E em Espanha é impressionante como as cidades de dimensão média têm excelentes livrarias. Em Palma de Maiorca há livrarias muito boas e em Valência também.
Quais foram os locais mais surpreendentes onde já encontrou livrarias?
A mais surpreendente foi a Brazenhead Books, em Nova Iorque, que estava num apartamento. Se não soubesses que existia, não podias ir. Há outra em Buenos Aires que também é uma casa. Em Bogotá, há uma que fica num parque de estacionamento, depois há livrarias nómadas, que são veículos.
E a mais peculiar ou mais estranha?
Em Palma de Maiorca há uma livraria-cabeleireiro. Chama-se Los Oficios Terrestres, é uma livraria de poesia e feminismo, e cabeleireiro. Encanta-me esse tipo de misturas surpreendentes.
Qual é para si o ‘Santo Graal’ das livrarias?
Não sei… não sei mesmo. Há muitas livrarias de que gosto mas nenhuma que seja perfeita. Isso é interessante, não? As livrarias são um reflexo do ser humano: têm as suas virtudes e os seus defeitos.
Qual então a livraria com que se identifica mais?
[pausa] Muitas. Digamos que de muitas escolheria certos elementos e daria um Frankenstein que seria a minha livraria ideal.