Marisa Matias. “É o PS que tem capitalizado mais a geringonça”

O governo de Costa tem ganho popularidade com as medidas propostas pelos partidos à sua esquerda

Marisa Matias acha que a esquerda está numa encruzilhada depois do caso grego e, para sair da crise, precisa de trabalhar na Europa com as pessoas. Em Portugal, valoriza o trabalho feito pela chamada geringonça, mas diz que vai chegar a hora de confrontar a maioria do governo com as imposições da União Europeia e de se conseguir discutir questões como a dívida e o tratado orçamental. Reconhece-se na atual maioria da direção do Bloco de Esquerda, mas pensa que, 18 anos depois, o seu partido devia dar menos força às tendências e mais expressão a um espaço comum de militância.

Segundo li num documento da Igreja Católica, os jovens pastores são a classe profissional com mais avistamentos de aparições. Enquanto foi jovem pastora, nunca viu nada nas azinheiras?

Não, nunca avistei. Talvez por não haver nenhuma azinheira em Alcouce.

Como foi a infância?

Já falei mais dela do que alguma vez na vida julgasse possível. Talvez porque não a achasse muito relevante. Digo isto sempre: não foi muito diferente da infância que tiveram a maioria das crianças que viviam nas aldeias pequenas a seguir ao 25 de Abril. A democracia demorou mais tempo a chegar. Embora ache que não é preciso ser pobre para perceber a pobreza, não é preciso ser mulher para perceber a desigualdade entre homens e mulheres, acho que, por ter vivido bastantes privações no acesso à água, à saúde e a à escola, e por elas terem chegado com a democracia, isso moldou-me para defender o Estado social e os serviços públicos. De cada vez que esses serviços são retirados, quem sentiu isso como ganhos diretos da vida percebe que há um retrocesso. Em relação ao resto, tive uma infância totalmente normal na minha aldeia.

Continuando com a tónica religiosa: santos da casa fazem milagres? Na sua aldeia, ganhou as eleições presidenciais?

Até nas europeias de 2014, em que o BE teve um resultado mau, ganhámos as eleições na minha aldeia. Não sei se é o caso de os santos da casa fazerem milagres, mas gosto de pensar que foi porque continuo a ter contacto com as pessoas, a conhecer a situação e a ser amiga delas. Só isso justifica que nos piores momentos, como nas eleições europeias de 2014, em que foi difícil eleger um eurodeputado, haja estes lugares de conforto. Não é por subserviência, as pessoas tratam-me da mesma maneira que me tratavam quando eu era miúda.

A sua aldeia não está numa zona conservadora?

Depende do que se entende por conservador. Do ponto de vista político, é uma zona onde o Partido Socialista quase sempre venceu as eleições locais. Apesar de haver uma franja conservadora: os meus avós, por exemplo, eram do PSD. Mas no meu conselho, o PS foi durante muito tempo a força maioritária.

Teve uma educação religiosa?

Mais ou menos. Fiz todas as coisas que se esperava que fizesse, mas nunca ninguém me obrigou a ir à missa. E a partir do momento em que tive a noção do que era a vida – o que foi muito cedo, nesses lugares é preciso começar a trabalhar muito cedo – decidi que não queria participar em cerimónias religiosas e não ocupar um espaço na minha vida com a religião, e não houve nenhum problema em relação a isso. A minha família é católica, mas nunca ninguém me cobrou nada pela minha opção.

Não acredita em Deus?

Tenho o maior respeito por todas as pessoas que acreditam e pelas religiões. Mas não acredito.

Como vê este Papa?

Tive a oportunidade de assistir a um discurso dele no Parlamento Europeu. Foi provavelmente um dos discursos mais progressistas que ouvi e, se pudéssemos enquadrá-lo na divisão esquerda e direita, seria provavelmente dos discursos mais à esquerda que aquele parlamento alguma vez teve a oportunidade de ouvir. Fez um discurso muito centrado na luta contra a austeridade, sobre o cinismo da União Europeia no tratamento dos refugiados e sobre as questões da pobreza. Revejo-me em muito daquilo que ele disse. Penso que ele quer recuperar aquilo que está na base do cristianismo da humanidade. Claro que temos diferenças em relação a algumas conceções de família.

Mesmo em relação a isso, houve mudanças durante o seu pontificado.

Obviamente que tem tido posições que eu acho que não se viam em anteriores Papas, mais em linha com os valores cristãos de que falava há pouco.

Ele fez um discurso no Parlamento Europeu, mas não parece que tenha conseguido nenhum milagre. O hemiciclo ficou rigorosamente igual nas matérias de que falou.

Não acredito em milagres e foi interessante ver que ele foi muito mais aplaudido pelas bancadas da esquerda do por aquela que se reivindica da democrata-cristã e do catolicismo. Os democratas cristãos, aliás, já praticam pouco a democracia e ainda menos o cristianismo: da sua designação, já resta pouco.

Porque começou a religião a ter um papel mais importante nas últimas décadas? Começou-se a falar de fundamentalismo islâmico, nos EUA apareceram vários movimentos de fundamentalismo cristão – qual a razão desse fenómeno com tantas implicações políticas?

É verdade que nos anos 60 e 70 esteve mais arredada, mas até nessa época, na Europa, a religião foi sempre usada como arma de arremesso e para justificar conflitos que nada têm que ver com a religião. Veja-se o caso da Irlanda do Norte: resumir este conflito ao conflito entre católicos e protestantes é obviamente desviar a génese da questão, que tem que ver com a unidade da Irlanda e com o domínio colonial que um outro país exerce.

Mas a religião também tem ali, como no caso da Polónia, um papel de identidade e ideologia, até porque os unionistas da Irlanda do Norte descendem de escoceses e são protestantes e os irlandeses são católicos.

Com certeza, há essa divisão, mas a questão não é teológica, mas política. É visível agora que está a ser acrescentada muita religião à política, com esta questão dos refugiados e da guerra no Médio Oriente, para ajudar a desunir as pessoas. Ao contrário que dizem muitos teólogos, a religião tem sido mais usada para desunir que para unir as pessoas nas regiões em conflito. Serve para dividir e simplificar os conflitos e tornar as pessoas completamente intolerantes. Em muitas destas zonas, é usada com o princípio de dividir para reinar. Quando muita gente confunde islamismo com fundamentalismo, e este com terrorismo, está a proceder a uma simplificação que depois é usada para outros fins.

Pode afirmar-se que há um processo também ligado ao falhanço no Médio Oriente das ideologias de esquerda? O crescimento do fundamentalismo deve-se também a isso e ao apoio da Arábia Saudita. Parece que a identidade dessas populações se faz pela afirmação de uma diferença religiosa.

Esse é um dos maiores problemas: criou–se o caldo político e social perfeito para criar uma crise identitária. Como se não chegasse uma crise económica, uma crise social e uma crise humanitária, está a juntar-se uma crise identitária que, pelos vistos, ninguém parece querer evitar. Não sei até se há condições neste momento para travar esse processo e evitar desastres maiores em resultado dessa crise identitária.

Se voltasse ao passado teria procedido de forma diferente em relação ao conflito na Líbia e às resoluções votadas no Parlamento Europeu?

Continuo a não perceber porque é que ainda se fala disso. É verdade que a delegação do Bloco não votou toda da mesma maneira. Na altura era composta pelo Miguel Portas, pelo Rui Tavares e por mim. O voto é nominal, eu e o Miguel Portas votámos contra a zona de exclusão aérea e o Rui Tavares absteve-se. Não consigo perceber como continua a haver pessoas que dizem que nós fomos favoráveis.

Mas não houve uma votação prévia da resolução no seu conjunto em que o voto do Bloco foi favorável?

Infelizmente, esse debate foi trazido para cima da mesa por uma família política que eu muito prezo [comunistas] e com a qual acho que devemos estar sempre numa lógica de aliança, em vez de andar à procura de esqueletos no armário uns dos outros. Por exemplo – e há milhares para dar – quando votámos, há pouco tempo, o relatório político que acompanhava o Orçamento de 2017 para o Parlamento Europeu, havia um voto separado sobre as sanções a Portugal. E toda a gente à esquerda votou a favor desse voto separado porque isso significava que não devia haver sanções. Quando chegámos à votação final desta resolução política que acompanhava esse ponto, eu abstive-me, porque entendia que havia coisas negativas e positivas e que, para mim, tinha pesado muito o facto de o parlamento ter votado nessa resolução contra as sanções do ponto de vista político. Havia outras coisas de que eu não gostava. Mas, por exemplo, o PCP votou contra a resolução. E eu, com isso, venho fazer uma campanha a dizer que o PCP é favorável a sanções para Portugal porque votou contra a resolução que também continha o ponto contra as sanções a Portugal? Claro que não. Porque tem de se perceber a lógica dos votos em separado. É possível votar contra as sanções e não estar de acordo com a globalidade do documento.

Acha que recorrentemente o PCP faz uma campanha contra si a propósito da Líbia?

Acho que provavelmente já estarei sepultada há muitos anos e ainda vão estar a falar do voto da Líbia no Parlamento Europeu. Acho é que isso não acrescenta rigorosamente nada. Porque se eu desse uma dúvida que fosse no que diz respeito à NATO e às intervenções militares nesses territórios, mas caramba, o meu trabalho nesses países nos últimos oito anos fala por isso. Da mesma maneira que eu não tenho nenhuma dúvida de que o PCP é contra as sanções a Portugal.

Chegou a ir à Síria?

Infelizmente, não vou lá há seis anos. Fui antes da guerra e depois. Mas dizer que fui lá depois da guerra é um pouco exagerado. Eu estive, nessa altura, na zona fronteiriça. O máximo que estive foi a 30 quilómetros dos territórios ocupados pelo Daesh. Houve zonas em que, por razões de segurança, fomos proibidos de ir. Estive lá, a última vez, em 2011, quando havia um grande fluxo de refugiados, na ordem dos 3 mil por dia a entrar no Líbano. E era preciso perceber no terreno o que se estava a passar. Mas sempre que se verificava que estávamos a 30 quilómetros das forças do Daesh, obrigavam-nos a voltar para trás.

Qual o caminho para resolver o conflito?

Não vejo outro caminho sem ser uma solução política. Não apoio Bashar al-Assad e quero que isso fique muito claro. Não o apoio porque, independentemente das histórias mais fantasiosas que possam contar sobre 2011, a verdade é que houve forças do governo que dispararam contra cidadãos desarmados e acho que isso é uma linha vermelha que não devia ser permitida a nenhum Estado. Dito isto, não creio que haja nenhuma solução política sem sentar toda a gente à volta da mesa e negociar, incluindo Bashar al-Assad. Depois há um jogo político e do conflito que complica tudo. Se alguém falasse comigo em 2011, eu achava que o conflito sírio era o mais fácil de resolver: porque o governo faria algumas cedências, haveria debate interno e eleições. Até porque o governo sírio, até então, presidia a um país, governado por uma minoria, em que havia uma convivência pacífica entre vários credos e culturas, um país intercultural no verdadeiro sentido. Havia ali condições para uma solução política. Até, na sequência da repressão, ter havido uma ingerência externa insuportável que permitiu armar forças associadas à Al-Qaeda e ao Daesh.

Está a falar da Arábia Saudita?

Estou a falar, obviamente, da Arábia Saudita, do Qatar e do comportamento cínico de muitos países da UE, como a França e o Reino Unido. Paris foi fazendo a gestão dos seus lucros e proveitos, fazendo sucessivos reforços de venda de armas para a Arábia Saudita. Das coisas mais terríveis que vi fazer em política foi quando François Hollande declarou o estado de sítio depois de um horrível atentado em Paris e, passados poucos dias, estava a condecorar o príncipe da Arábia Saudita, saudando o aumento das vendas de armas francesas a esse país e o que isso tinha significado na balança comercial francesa. Não vivemos num mundo de inocentes em que os governantes não saibam as consequências dos seus atos. Os grupos terroristas têm armas porque são armados; se são armados, é porque alguém lhes deu essas armas. E toda a gente sabe qual é o papel da Arábia Saudita nestes conflitos e o seu apoio a grupos armados, muitos deles ligados à Al-Qaeda. Há mais dúvidas em relação ao papel da Turquia, que faz jogos duplos e triplos, faz todos os jogos que Erdogan quer para impedir a existência de uma entidade autónoma curda na região. O que eu condeno é que, perante isto tudo, depois da repressão de Bashar al-Assad é que os países da União Europeia tenham ido a correr tomar partido e armar de forma indiferenciada todos os grupos de oposição ao governo de Damasco. Foi isso que permitiu o crescimento de muitos grupos terroristas. Nós criámos o caldo perfeito para termos a maior catástrofe humanitária de que nos lembramos. Acresce que os líderes dos países ocidentais tudo fizeram para que se criasse uma confusão entre os refugiados e o terrorismo, dificultando ainda mais a solução da crise humanitária. É preciso, finalmente, dizer que a solução para a Síria só pode ser encontrada pelo povo desse país sem ingerências externas. Eu apresentei duas vezes no Parlamento Europeu a proposta de que houvesse embargo de venda de armas a terroristas. Essas propostas nunca passaram.

O problema é também como se define o que é um grupo terrorista. Os terroristas de uns são, às vezes, os libertadores de outros. O Parlamento Europeu define como terrorista o PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão) mas, provavelmente, essa não é a conceção que têm os curdos turcos a esse respeito.

Eu oponho-me à inclusão do PKK na lista negra dos grupos terroristas. Da mesma maneira que a UE tem um problema com os curdos, e não apenas com o PKK. Apoiam-nos quando servem de escudo humano contra os terroristas a norte da Síria como, ao mesmo tempo, nada fazem para que haja corredores humanitários para chegar com víveres e medicamentos às zonas onde vivem os curdos, e ainda menos fazem para impedir a repressão turca às populações do Curdistão em território ocupado pela Turquia.

A UE tem feito o suficiente para contrariar a deriva autoritária da Turquia?

A Turquia nem sequer é signatária dos textos mais básicos de proteção dos direitos humanos. Está num crescendo de autoritarismo: repressão aos jornalistas, fecho de órgãos de comunicação social, prisão de professores, magistrados e deputados curdos. Verifica-se uma escalada enorme rumo ao autoritarismo. Erdogan está a fazer tudo o que pode para se converter num novo sultão otomano. No entanto, a UE não deixa de fazer acordos com a Turquia para a questão dos refugiados: dá-lhe 3 mil milhões de euros, com mais 3 mil milhões numa segunda tranche para um governo com essas características.

O acordo não era necessário, por causa do fluxo crescente de refugiados?

Claro que não era. Em relação ao fluxo de refugiados, fala-se sempre como a UE estivesse a ser submergida pelos refugiados, quando isso não é verdade.
O Líbano, que é um país do tamanho do Algarve, com quatro milhões de habitantes, recebeu muito mais refugiados do que aqueles que tentaram chegar à UE. Estamos a falar de dois milhões de pessoas. O comportamento da UE tem sido vergonhoso. Tinha tido capacidade para acolher esses refugiados e ter ajudado a conseguir uma solução política para o conflito. As pessoas não vêm para os países da Europa porque querem. Ninguém gosta de vir para sítios onde não é bem acolhido e ninguém gosta dele, e só têm má ideia e preconceitos, e não há dois braços abertos para acolher. Eu tenho sentido isso no terreno, as pessoas querem voltar para o seu país em paz. As pessoas suportaram os maiores traumas da vida: perderam família, perderam casas, perderam tudo. Não se sentem desejadas em lado nenhum. A UE tinha condições de os receber humanamente, e não em campos que parecem mais de detenção do que humanitários.

Mas como é possível países com poucas centenas de milhares de pessoas, como a Eslovénia, que está numa zona de passagem, lidarem com um fluxo muito grande de refugiados?

Aí, a resposta nunca podia ter sido deixada aos países que estão na zona de passagem. É incomparável ver o problema em Portugal e na Suécia a olhar da Grécia, Itália ou Eslovénia. Não se pode dizer que se está a fazer um esforço comum quando isso nunca foi feito.

Mas para isso tinha de se alterar a Convenção de Dublin, que obriga a que os refugiados fiquem no país da UE a que chegaram.

Claro, havia muitas coisas a serem feitas e as lideranças europeias preocuparam–se em fazer todas menos aquelas que eram básicas. Era preciso rever Dublin para assumir que a responsabilidade era de todos. Não só por uma questão humanitária, mas até porque nós temos responsabilidades no que aconteceu naquela região. Aquela situação é herdeira da invasão do Iraque, das guerras no Afeganistão e da situação insustentável que se eterniza na Palestina. Sobre tudo isso, há responsabilidades que pesam nos governos dos países da UE.

Como se explica então que um número tão diminuto de refugiados tenha causado pânico na população e um aumento exponencial da extrema-direita?

A extrema-direita tem um peso grande, porque grande parte dos espaços políticos vazios foram ocupados por eles. Nós, em Portugal, temos dificuldade em perceber isso porque, felizmente, não temos uma expressão grande desse tipo de forças. O que não quer dizer que não haja racismo e xenofobia em Portugal. A extrema-direita tem um peso enorme nos países de leste e da Europa central, de forma absolutamente incompreensível, fazendo parecer que não se aprendeu nada com a História. Tem um peso muito significativo na Grécia, na Alemanha, Itália e França, países que sofreram tanto com o nazismo.

A opinião da extrema-direita sobre os refugiados, os imigrantes, o islão, o fundamentalismo não é compartilhada por muitos setores da população para além da extrema-direita?

O problema é esse. Essas conceções foram normalizadas.

Até forças que estão no patamar contrário, como Mélenchon, que nas presidenciais fez um discurso bastante receoso em relação à imigração.

Não acho que haja comparação. Ele estava a falar em relação aos imigrantes e refugiados, mas num contexto completamente distinto. Estas frases dele foram completamente deturpadas. O que ele disse é que tínhamos de criar as condições para que as pessoas pudessem viver bem nos seus países. Se queremos uma política de cooperação com os países em desenvolvimento, tem de ser uma real política de cooperação. Não é chegar lá e retirar os recursos todos e manter esses países reféns por causa de dívidas externas ilegítimas, imorais e impossíveis de pagar. Os programas de cooperação para esses países são uma fraude, só são de cooperação no nome. Dito isto, a questão da naturalização das conceções da extrema–direita é um problema mais grave, é um problema de sociedade. Porque se cria isso? Vejamos um exemplo: 80% dos refugiados que chegam à UE são mulheres e crianças, mais de 50% têm menos de 18 anos, há milhares de crianças abandonadas e sozinhas. Apesar disso, raramente vi uma imagem de refugiados a chegarem à UE que não fosse de homens jovens, que é uma imagem que obviamente se associa mais a uma ameaça terrorista do que se se visse o número esmagador de mulheres e crianças que se refugiam na Europa. Há aqui uma intenção de fazer passar uma ideia de ameaça.

O seu ex-colega de bancada Rui Tavares tende a dividir parte do conflito político atual na UE entre cosmopolitas favoráveis à Europa e nacionalistas xenófobos. Está de acordo?

Não. Acho que a realidade é muito mais complexa do que isso. Não acho possível fazer um combate político nesses termos. Sobretudo em Portugal, onde nós sentimos na pele a interferência das políticas da troika e da UE na nossa vida. Há áreas em que abdicámos de soberania, como as pescas, a política agrícola comum e a política ambiental, mas não abdicámos de soberania nos tratados, em relação à política de saúde, à educação, por exemplo. Mas quando vemos os memorandos de entendimento de ajuda financeira com a UE, o Pacto de Estabilidade, tudo o que são as “reformas” impostas pela UE e BCE, elas passam por tocar nas áreas onde a UE não tem legitimidade: impõem que se corte na saúde, na educação, e querem que se reduza o Estado ao mínimo. Pretendem que os serviços públicos passem a ser serviços mínimos e serviços para pobres, o que faz deles pobres serviços públicos, e não serviços ao nível de uma sociedade democrática. É óbvio que quem passa por estes processos percebe que não há nenhuma contradição entre continuar a ser internacionalista, pensando o mundo numa escala de cooperação internacional, e ao mesmo tempo tender a resgatar espaços de soberania que nos foram retirados. E quem defende os tratados europeus devia ser favorável a que seja respeitado o princípio da subsidiariedade.

A UE funciona como uma espécie de força de ocupação em Portugal?

Eu gosto de ter cuidado com as palavras. É preciso ter cuidado com essa ideia, até porque, infelizmente, não houve nada que fosse feito nos anos da troika que não tivesse tido a conivência dos governos que estavam no poder.

Consta que o Pétain também colaborou com o Adolf (risos).

Seja como for, estamos num quadro com três instituições diferentes: Conselho, Comissão e Parlamento Europeu. É muito fácil dizer que as sanções foram sacrifícios a mais, mas o parlamento onde eu estou teve permanentemente uma maioria, que incluía deputados portugueses, que votavam a favor da sanções, da austeridade e de um conjunto de medidas que prejudicaram os países do sul da Europa. Claramente, a UE extravasou os seus poderes e não teve a mínima preocupação em relação aos problemas que estávamos a viver na Europa, de desemprego, crescimento exponencial das desigualdades e falta de distribuição da riqueza dentro dos países, e dentro dela. E fez tudo o que estava ao seu alcance para eliminar a capacidade de resistência das pessoas em relação à contratação coletiva e aos direitos laborais, isso é um facto. Destruiu paulatinamente pilares fundamentais do funcionamento democrático das sociedades mas, volto a dizer, tenho dificuldade em lhe chamar ocupação.

É correto dizer que o Bloco evoluiu da defesa de um europeísmo de esquerda e da convicção de que era possível mudar estas instituições europeias para uma convicção mais soberanista e de que é necessário recuperar alavancas nacionais e democráticas de decisão e travar determinados processos de integração como a moeda única?

O Bloco tem, obviamente, tido um posicionamento sobre a integração europeia que decorre da evolução desse processo. Não creio que o Bloco tenha tido muitas ilusões em relação a esta integração europeia.

Mas defenderam o euro e a impossibilidade de saírem dele, e agora falam abertamente da necessidade de pensar num plano B.

E continuará a haver posições diferentes no Bloco sobre essa matéria. E é com essa diversidade de posições que eu vivo bem.

E qual a sua posição sobre essa matéria, então?

É óbvio que nos apresentámos às eleições europeias em 2009 numa posição crítica mas dentro do europeísmo de esquerda; mas, em 2014, já tínhamos um mote que não deixava margem para dúvidas, que era desobedecer à UE. A coerência que temos de ter é nos valores e nos princípios, não é dizer 20 anos seguidos as mesmas palavras. É verdade que em relação ao euro houve uma evolução da nossa parte, mas ela acompanhou uma evolução mais global. Não podemos ficar imunes ao período pós-crise financeira e à resposta que foi dada, que foi completamente contrária ao que se exigiria para defender a maioria da população. Os dirigentes europeus da altura garantiam que a crise era nos EUA e não afetaria a UE, e não houve região no planeta que fosse tão afetada por esta crise como a Europa, com uma sucessão de políticas, que eu não diria que são erradas porque foram intencionais, para atacar de uma forma violenta os equilíbrios europeus e o Estado social. Não se deve ter nenhum tabu em relação a discussão nenhuma, inclusive o euro. Os factos mostram que, antes de entrar a moeda única, tínhamos uma margem de manobra maior e taxas de crescimento superiores. Depois da moeda única tivemos taxas de crescimento anémicas, e durante o período da intervenção da troika até foram negativas. Sempre denunciámos que a arquitetura do euro não funcionava. É factual que há um antes e um depois da entrada no euro da economia portuguesa e da europeia, e em relação a isso temos de olhar para esses factos e fazer esse debate até ao fim. Não acredito em certezas na permanência e saída, mas é preciso fazer esse debate. A coisa mais certa que tenho é a dificuldade de mudar a arquitetura do euro na Europa, tendo em conta a correlação de forças existente. Mas também não gosto de fazer um discurso simplista de só apontar as vantagens da saída sem falar dos problemas que essa saída pode trazer – isto apesar de ter claro que o euro foi um fator de divergência, e não de convergência das economias europeias.

Acha que é possível ter uma outra governação económica nesta UE?

Sinceramente, acho que a arquitetura e os tratados colocavam as coisas de uma forma muito difícil e isso foi agravado com a legislação aprovada depois da crise financeira e das dívidas soberanas. Conseguir fazer uma governação económica diferente daquela a que nos têm obrigado tornou-se ainda mais difícil. A lógica que foi aprovada é de punição: ter uma mão muito forte com os mais fracos e muito permissiva com os mais fortes. Não há um tratamento aproximado sequer em relação aos défices e aos excedentes. E são tão perigosos para a coesão europeia, uns e outros. Para agravar, acontece muita coisa fora dos tratados. Há uma condução cada vez menos democrática da UE. Existem organismos informais que não constam dos tratados, como o Eurogrupo, que têm mais poderes que instituições eleitas. O BCE é a mesma coisa: vale mais o que diz Mario Draghi do que o funcionamento das instituições. O Tratado de Lisboa, ao reforçar a falta de democracia, fez com que se tornasse mais difícil a criação das alternativas. Mas em democracia podem sempre ser criadas novas alternativas. Como está neste momento, a UE não funciona.

A geringonça pode sobreviver à UE?

Acho que a destruição económica e social do país foi tão grande que, mesmo havendo uma divergência política grande dos partidos que compõem a geringonça em relação à UE, há margem de manobra suficiente para se poder melhorar a vida das pessoas. No entanto, acho que não se consegue evitar a questão europeia muito mais tempo.

Apesar de se falar de geringonça, temos um governo do PS. A forma como está a lidar com os problemas do setor financeiro não indicia que muito pouca coisa mudou?

Aí há um colete de forças enorme por parte da UE. Acho que o governo devia ter feito toda a força possível no caso do Novo Banco, como do Banif, com o mesmo empenho que com a CGD. Apesar de não ser uma solução perfeita, na Caixa evitou-se aquilo que era a solução única, apresentada por Bruxelas, de privatizar. No caso do Novo Banco, depois da lá gastarmos muitos milhares de milhões de euros, a melhor solução que servia o país seria a nacionalização. A questão do sistema bancário, a questão da dívida e o tratado orçamental são as grandes questões que são nucleares resolver no nosso futuro. Este confronto com Bruxelas tem de ser permanente para se conseguir fazer mais coisas.

Não há perigo, olhando para as sondagens, em que o PSD vai descendo e o PS subindo, que qualquer dia o governo possa não necessitar de aliados à esquerda?

Quem tem capitalizado mais a geringonça tem sido o PS, mas ele sabe que o fez com muitas das medidas exigidas pelos partidos mais à esquerda. O PS a governar sozinho, até agora, significou a obediência total à UE e com políticas liberais. E levaria a um grande afastamento das pessoas, como sucedeu aos sociais-democratas noutros países da Europa. Não interessa a lógica do quanto melhor pior. Nem podemos estar na política numa lógica calculista ou eleitoralista. É tentar ir o mais longe possível, recuperar soberania e conseguir uma maior justiça social.

Revê-se na atual configuração de tendências do Bloco?

Para ser muito honesta, o Bloco tem essa enorme vantagem nos partidos: permite que haja formas de organização muito distintas – corrente, tendências. As pessoas, dentro do BE, devem fazer o que lhes apetece. A minha opinião pessoal é que, 18 anos depois, se calhar poderia já não haver lugar para uma necessidade de afirmação de tendências como existe e ser mais um espaço de afirmação comum. Reconheço-me na atual maioria.

Como se compagina esse discurso dos militantes se organizarem como querem e depois expulsam as pessoas do Socialismo Revolucionário por se organizarem em tendência?

Não é bem assim. Eu, sinceramente, não gosto de discutir publicamente as questões internas. Mas é uma questão complexa. O processo de adesão dessas pessoas não foi claro.

Está otimista em relação à esquerda na Europa?

Nada otimista. Estamos quase à porta de umas eleições europeias e temos pouco tempo para reforçar a esquerda. O que se passou na Grécia, não vale a pena varrer as coisas para debaixo do tapete, foi um grande golpe na esquerda europeia. É preciso uma esquerda coerente e próxima das pessoas, e responder aos problemas das pessoas.