Quando acabei de escrever este artigo, recebi o seguinte email de uma leitora fiel: «Continuarei a ler o SOL, mesmo custando 3 euros. Mas espero informação isenta, desigual de outros periódicos. Não falem dos 3 F. Escrevam com ousadia».
Tive de responder que… acabara precisamente de escrever sobre os 3 F!
Entendi que não podia deixar de o fazer sobre um dia que, já sendo festivo pelo aniversário das aparições de Fátima, figurará na história de Portugal pela ocorrência de espantosas coincidências.
Num só dia, o país de Fátima, Fado e Futebol atingiu em todas estas áreas momentos de glória. É certo que o Fado não foi bem fado, mas foi uma canção de amor e saudade cantada em português.
Mas vamos por partes.
Um dos acontecimentos estava programado com antecedência, mas nem por isso tinha menos significado. Refiro-me à visita do Papa e à santificação dos pastorinhos. Se a visita de um Papa é sempre um acontecimento marcante, a canonização de Francisco e Jacinta Marto – exatamente 100 anos depois da primeira aparição na Cova da Iria – é um marco na história do país, independentemente de se ser ou não católico.
Esta santificação dos pastorinhos, reforçada com a presença do Papa Francisco, consagrou definitivamente Fátima como um dos grandes locais de peregrinação do Planeta. E nem vale a pena explicar a importância deste facto.
As peregrinações, a par de outras ações religiosas, constituem uma prova de que para os seres humanos a vida não se esgota na matéria.
Há um lado emocional no homem que precisa de ser alimentado.
Os católicos exprimem-no através das manifestações de fé religiosa, mas há muitas outras: a fé clubística, o fervor partidário ou, noutro plano, a exaltação das artes e das letras.
O ser humano não se contenta em comer, dormir e consumir.
A satisfação plena só se obtém no aperfeiçoamento do espírito.
Locais como Fátima são símbolos palpáveis de um poder diferente – um poder transcendente, imaterial.
Muitos cidadãos procuram ali aquilo que lhes falta para encararem a vida com esperança.
A santificação dos pastorinhos e a visita do Papa Francisco já bastaria para colocar a data de 13 de Maio de 2017 na história contemporânea do país. Mas dois acontecimentos, não programados, ajudaram à festa – e de que maneira.
Um foi o apuramento do campeão nacional de futebol de 2017, e a correspondente festa do título. Foi o Benfica mas poderia ser outro – que a coincidência com os acontecimentos em Fátima seria sempre importante. Mas o facto de ser o maior clube português deu aos festejos uma dimensão maior.
Há uns anos, depois de uma época trágica para o Benfica, lembro-me de dizer a um jornalista da BTV que, se o clube mantivesse o rumo e não fizesse disparates, sucederia ao FC Porto na hegemonia do futebol português. Pinto da Costa estava na reta final da carreira – e quando o Porto entrasse em declínio o Benfica ocuparia naturalmente esse lugar.
Na altura o treinador era Jorge Jesus, e Luís Filipe Vieira era pressionado para o despedir. Mas não o fez, preservou a estabilidade – e hoje o Benfica já vai no tetra…
Esta vitória, para lá dos méritos pessoais de treinadores e jogadores, representa sobretudo o triunfo da estabilidade. Sem estabilidade não se faz nada – da política ao futebol. Pinto da Costa já o tinha demonstrado à saciedade no Porto, através de um percurso notável. Luís Filipe Vieira ‘imitou-o’ – e está a colher os frutos da sua perseverança e da firmeza da sua liderança.
Assim, na tarde do dia 13 muita gente teve de vir a correr do Santuário para a ‘Catedral’, ou seja, do Santuário de Fátima para o Estádio da Luz (conhecido como Catedral), para assistir ao jogo do título. António Costa que o diga. Outros vieram diretamente para a festa no Marquês de Pombal. E entre Fátima, a Luz e o Marquês nunca Portugal deve ter tido tanta gente na rua. E os que não saíram de casa estiveram agarrados ao televisor de manhã à noite. De manhã e ao princípio da tarde a ver as imagens de Fátima; ao fim da tarde a ver o jogo do Benfica; à noite a assistir às comemorações do título e ao festival da Eurovisão.
É que, enquanto decorria a festa do Benfica, a muitos quilómetros de distância, na longínqua Ucrânia, um outro acontecimento dividia a atenção dos portugueses: a final do Festival da Eurovisão, onde a canção portuguesa estava entre as favoritas.
A música tinha uma vantagem gigantesca sobre todas as outras: era diferente. No mundo globalizado em que vivemos, com tendência para a massificação e a uniformização, a diferença é um importante valor. Mas fazer diferente exige talento e exige coragem. A tendência é para fazer igual aos outros.
Ora, na canção portuguesa, tudo se diferenciava: a música, a encenação e o intérprete. No meio daquela girândola de efeitos especiais para encher o olho, Salvador distinguia-se pela sobriedade. Atrás dele, passavam imagens da natureza. Nada de grupos de bailado, nem de coros, nem de meios sofisticados, nem de tecnologia. Tudo era natural.
A canção, além de simples, não se dirigia apenas aos ouvidos – mas aos sentimentos. E foi interpretada por um jovem que parecia um anjo – de voz melodiosa, olhar sonhador e sorriso cativante.
É claro que para o sucesso também contribuiu o facto de ser uma canção escrita pela irmã mais velha para o irmão mais novo; e a emoção causada pelo conhecimento da doença de Salvador.
Se em Fátima houve uma vitória da ‘espiritualidade’, se o êxito do Benfica foi a vitória da ‘estabilidade’, o triunfo de Luísa e Salvador Sobral foi a vitória da ‘simplicidade’.
E foi mais uma vitória fora do ‘sistema’. Tal como na política temos assistido a vitórias de políticos ‘improváveis’, também aqui se verificou um vencedor fora dos cânones da Eurovisão.