É da praxe. Francisco não dá entrevistas quando visita um país, mas a bordo do avião papal há sempre uma conferência de imprensa. Na visita de Bento XVI, em 2010, aconteceu à chegada e viagem ficaria marcada pelo momento em que Ratzinger reconheceu o pecado que existe dentro da Igreja e disse que o «perdão não substitui a justiça».
Desta vez, a ronda de perguntas e respostas fez-se já no regresso a Roma e as dúvidas sobre o que tem feito o Vaticano para fazer justiça perante os casos de abusos de menores na igreja, que estiveram longe de dominar a visita como em 2010, tornaram a ser suscitadas, desta vez pelo enviado do National Catholic Reporter Joshua McElwee.
Em março, Marie Collins, molestada por um padre quando tinha 13 anos, demitiu-se da comissão criada por Francisco para analisar todos os casos que chegam à Santa Sé, alegando que os processos não estão a ter o devido andamento. Francisco respondeu detalhadamene. «Marie Collins explicou-me bem a situação. Falei com ela: é uma boa senhora. Continua a trabalhar na formação com os sacerdotes sobre este ponto. É uma boa mulher, que quer trabalhar. Fez essa acusação; e um pouco de razão tem-na», disse o Papa, sublinhando, porém, que houve avanços, que foram dadas instruções sobre a forma como devem reportar os casos e que estão a admitir mais pessoas para a comissão. Os processos são analisados em tribunal eclesial e existe a hipótese de recurso para uma segunda instância eclesial. Aqui, se se aprova a primeira sentença, termina o caso e retira-se definitivamente o estado clerical do sacerdote, disse Francisco. «Só resta [a faculdade de escrever] uma carta, pedindo a graça ao Papa. Eu nunca assinei uma graça», garantiu. «É assim que estão as coisas, e vamos avançando. Naquele ponto, Marie Collins tinha razão; mas nós também estávamos a caminhar. O problema é que há dois mil casos acumulados …»
Se durante a visita a Fátima as palavras de Francisco (e as entrelinhas) se centraram sobretudo no significado da mensagem das aparições há 100 anos e no que deve significar ser católico nos dias de hoje, o Papa acabaria por responder no voo às questões da atualidade.
Fátima Campos Ferreira, do grupo de seis repórteres portugueses a bordo do voo papal, foi a primeira a perguntar-lhe sobre o que espera do encontro com Donald Trump, marcado para 24 de maio. Logo na primeira oração à chegada ao santuário no 12 de maio, Francisco tinha apelado à «concórdia» entre os povos e à missão dos cristãos enquanto peregrinos, falando dos muros – iconicamente uma das marcas da presidência norte-americana, mas isto já é do reino das tais entrelinhas que nunca dão para confirmar. «Percorreremos, assim, todas as rotas, seremos peregrinos de todos os caminhos, derrubaremos todos os muros e venceremos todas as fronteiras, saindo em direção a todas as periferias, aí revelando a justiça e a paz de Deus», rezou. No avião respondeu um pouco mais concretamente. «Que pode esperar o mundo? [do encontro com Trump] – Paz. E de que vou falar, daqui para diante, com quem quer que seja? – Da paz», disse Francisco. «E queria dizer uma coisa que me tocou o coração. Horas antes de embarcar, recebi alguns cientistas de várias religiões que estavam a fazer investigação no Observatório Vaticano de Castel Gandolfo; incluindo agnósticos e ateus. E um ateu disse-me: ‘Eu sou ateu – não me disse de que etnia era, nem donde vinha; falava em inglês, e assim não consegui saber, nem lho perguntei -. Peço-lhe um favor: diga aos cristãos que amem mais os muçulmanos’. Isto é uma mensagem de paz.»
«É isso que vai dizer a Trump?», continuou Fátima Campos Ferreira. Segundo a transcrição disponibilizada pelo Vaticano, o Papa limitou-se a sorrir. Mais adiante, quando um jornalista da NBC o voltou a questionar sobre que opinião tem de Trump, Francisco não se descoseu muito mais, mas fez uma espécie de ato de fé sobre o que está para vir. «Eu nunca faço um juízo sobre uma pessoa sem a ouvir. Acho que não o devo fazer. Enquanto falamos um com o outro, esclarecem-se as coisas: eu direi o que penso, ele dirá aquilo que pensa. Mas eu nunca, nunca quis fazer um juízo sem ouvir a pessoa.» Mas o que pensa sobre alguém que, em temas como o acolhimento de migrantes, age de forma contrária a si?, insistiu o repórter. «Há sempre portas que não estão fechadas. É preciso procurar as portas que estão pelo menos um pouco abertas, para entrar e falar sobre as coisas comuns e avançar. Passo a passo. A paz é artesanal: constrói-se todos os dias. Também a amizade entre as pessoas, o conhecimento mútuo, a estima são artesanais: constroem-se todos os dias. O respeito pelo outro, dizer o que se pensa (mas com respeito), caminhar juntos… Alguém pensa duma certa maneira; pois diga-o. Há que ser muito sincero naquilo que cada um pensa.»
Cláudio Lavagna continuou: «O Santo Padre espera que ele amoleça as suas decisões depois de…» Francisco respondeu numa frase, que diz mais sobre si do que de Trump: «Isso é um cálculo político, que não me permito fazer. Mesmo no plano religioso, não sou proselitista. Obrigado!»
A força do exemplo
A ideia de um «Papa do povo», que convence sobretudo pelo exemplo, foi das mais ouvidas em Fátima. Um dos momentos mais simbólicos aconteceu logo à chegada ao santuário, quando Francisco esteve oito minutos em silêncio diante da imagem de Nossa Senhora na Capelinha das Aparições. «Aquele tempo de silêncio, acompanhado por aquela multidão é algo impressionante, a gente está habituada a que, quando noutros espaços se pede um minuto de silêncio, as pessoas não aguentam e começam a bater palmas, aqui aproveitaram este silêncio para, com o Santo Padre, interiorizar a sua relação com a Santíssima Virgem», disse D. Pio Alves, responsável pela comunicação social da Conferência Episcopal Portuguesa, citado pela agência Ecclesia.
A ideia de que Francisco quer iluminar pelo testemunho, mais do que do alto do púlpito, ficaria patente no resto da visita, onde longe das câmaras esteve com refugiados a viver em Portugal e teve dos momentos mais espontâneos com crianças. Mas não faltaram, entre as palavras de devoção a Nossa Senhora de Fátima (foi num 13 de maio que soube que ia ser bispo de Buenos Aires), alguns recados.
Na intervenção na bênção das velas, na noite de 12 de maio, questionou a forma como muitos vivem a fé, falando concretamente dos que procuram Fátima. «Peregrinos com Maria… Qual Maria?”, provocou Francisco. «Uma ‘mestra de vida espiritual’ (…), a ‘bendita por ter acreditado’ sempre e em todas as circunstâncias, ou então uma ‘Santinha’ a quem se recorre para obter favores a baixo preço? A virgem Maria do Evangelho (…) ou uma esboçada por sensibilidades subjetivas que A veem segurando o braço justiceiro de Deus pronto a castigar?», disse. «Devemos antepor a misericórdia ao julgamento e, em todo o caso, o julgamento de Deus será feito na misericórdia ao julgamento», num discurso que lembra os recados que os padres dão nas paróquias de meios mais pequenos sobre as intrigas entre vizinhos.
Mas a figura de Nossa Senhora acabou por ser central nos momentos litúrgicos da visita, que culminaram na homilia da missa do centenário e da canonização dos pastorinhos, no 13 de maio, onde Francisco e Jacinta foram proclamados santos pelas 10h26. «Temos mãe», repetiu, no meio da aclamação espontânea em todo o recinto, onde se pensa que tenham estado perto de meio milhão de pessoas. Nas últimas semanas, o tema das aparições de Fátima tinha feito correr tinta em Portugal, com uma discussão sobre se o que aconteceu de facto para a Igreja em 1917 a ser desencadeada por entrevistas a D. Carlos Azevedo ou o padre Anselmo Borges, que apontaram antes para visões imaginativas das crianças. Na homilia, o Papa subscreveu a ideia popular de que Nossa Senhora «veio» à Cova da Iria mas deixou uma nova mensagem sobre o entendimento da Igreja sobre os acontecimentos de há cem anos. «A Virgem Mãe não veio aqui, para que A víssemos; para isso teremos a eternidade inteira, naturalmente se formos para o Céu. Mas Ela, antevendo e advertindo-os para o risco do Inferno onde leva a vida – tantas vezes proposta e imposta – sem Deus e profanando Deus nas suas criaturas, veio lembrar-nos a Luz de Deus que nos habita e cobre», disse.
Desde o ano 2000, quando a Igreja revelou o terceira parte do segredo de Fátima – interpretado desde então como a tentativa de assassinato de João Paulo II em 1981, o «bispo vestido de branco» na visão dos pastorinhos – que a Santa Sé não expunha publicamente a sua interpretação sobre os acontecimentos de Fátima. Na altura, a análise foi feita por Joseph Ratzinger, então prefeito para Congregação da Doutrina da Fé. O futuro chefe da Igreja Católica, hoje Papa emérito, disse que as aparições aos pastorinhos foram uma «perceção interior», não uma experiência subjetiva, mas com o «toque suave de algo real que está para além do sensível». Ratzinger, sintetizando uma resposta ao significado das três partes do segredo de Fátima, escreveu que são sobretudo uma «exortação à oração como caminho para a ‘salvação das almas’ e, no mesmo sentido, o apelo à penitência e à conversão.»
Se a análise de Ratzinger apontava para os deveres interiores dos católicos, Francisco, falando no lugar onde tudo começou e de onde viriam a nascer dez mil paróquias e santuários dedicados a Fátima em todo o mundo, pôs a tónica nos deveres exteriores de quem segue as palavras de Nossa Senhora e falou de um apelo à esperança e paz. Citando uma carta da irmã Lúcia de 1943, em que esta revelava que Nossa Senhora pediu e exigiu o cumprimento dos deveres, Francisco disse que foi desencadeada na Cova da Iria uma «mobilização geral contra esta indiferença que nos gela o coração e agrava miopia do olhar.»
A peste na igreja ou o apelo à catequese humana
E, na viagem de regresso, Francisco pareceu tornar a falar dessa miopia de olhar. Numa altura em que não era suposto haver mais perguntas, o Papa quis saber quem era a jornalista que tinha ficado à espera de haver tempo para uma terceira ronda de perguntas. Quando o diretor da sala de imprensa do Vaticano, Greg Burke, lhe respondeu que era uma portuguesa, Francisco desabafou «eh, coitada» e deixaram-na fazer a pergunta, que traria a afirmação mais fraturante de toda a visita.
«Em Portugal, quase todos os portugueses se identificam como católicos – quase todos, quase 90% -, mas a forma como se organiza a sociedade, as decisões que tomamos são muitas vezes contrárias às orientações da Igreja. Refiro-me ao casamento dos homossexuais, à despenalização do aborto. Agora vamos começar a discutir a eutanásia. Como vê isto?», perguntou Joana Haderer, da Lusa.
«Creio que é um problema político, mas também que a consciência católica por vezes não é uma consciência totalmente aderente à Igreja; e que, por trás disso, falta uma catequese matizada, uma catequese humana… Um exemplo duma catequese séria e matizada é o Catecismo da Igreja Católica. Creio que é falta de formação e também de cultura. Pois é curioso um fenómeno que se verifica… noutras regiões (penso que na Itália, algures na América Latina): são muito católicos, mas são anticlericais».
«E isso preocupa-o?», continuou a jornalista. A resposta surpreendeu, porque o recado final foi para os padres. «Claro que me preocupa! Por isso, digo aos sacerdotes (já o tereis lido!): «Fugi do clericalismo». Porque o clericalismo afasta as pessoas. «Fugi do clericalismo». E acrescento: é uma peste na Igreja. Mas também aqui se trata de trabalho de catequese, de consciencialização, de diálogo, inclusive de valores humanos».
Não, a Igreja não está a favor da eutanásia, mas a forma com fala da vida humana poderá, acredita o Papa, chegar melhor às pessoas.