Nem tudo o que parece é. O velho ditado português aplica-se como uma luva às notícias que há duas semanas foram divulgadas pelos media lusos sobre uma criança romena supostamente raptada em Vila Nova de Foz Côa pelo pai residente na Turquia.
Na verdade, a única inocente na trama é Eugénia Stoica, a menina de 9 anos que, após o rompimento da relação entre os pais, cinco anos antes, foi tratada por ambos como uma bola de trapos. Não foi a primeira, nem será a última, e tudo indica que o caso será arquivado brevemente.
Pai vem a Portugal
A história começa na Turquia. O pai de Eugénia, Ulquer Aydin, sai do país com a família rumo a Madrid, com pouca bagagem mas dinheiro suficiente para os gastos previsíveis. Com uma loja no maior mercado de Istambul, o Grande Bazar, onde negoceia de tudo, de tapetes a bijutaria, o homem vive com folga. Trajando desportivamente, de jeans e polo, tenta segurar a ansiedade e o medo, mantendo um ar descontraído.
Já a mulher, Martinescu Florina, 42 anos, e a filha mais velha, Ulker Seranur, 17 anos, mais convencionais, com vestidos pretos mas sem o véu que o país muçulmano voltou a retirar da arca das velhas tradições, vêm de cenho carregado, tão negro como as roupas que as cobrem.
As mulheres acompanham-no por pura estratégia: servem-lhe de retaguarda. Entre a documentação, além do passaporte dos três, trazem outro da filha mais nova que ficou em Istambul. Para que servirá?
Aydin ainda desconhece se a sua missão será ou não bem-sucedida, e quanto tempo exatamente terá de ficar ausente do seu país, e por isso não comprou bilhetes de ida e volta.
Chega a Espanha a 16 de maio, aluga um Opel Corsa no aeroporto de Barajas e encaminha-se para Portugal, direito a Foz Côa. Nessa noite, depois de fazer o reconhecimento do local, fica com a família no carro.
Entretanto, alguém contratado por ele recolhera as informações necessárias – e o homem, de manhãzinha, está preparado para agir. Com a viatura estacionada de frente para a escola primária na Avenida Cidade Nova, de forma a não perder nenhum movimento nas entradas e saídas do estabelecimento de ensino, espera reaver a filha que lhe fora raptada há cinco anos pela mulher com quem mantinha uma relação extraconjugal.
A versão da mãe
Por volta das 8h00, vê finalmente Eugénia Stoica: mais crescida, perdera os traços da bebé que conhecera. Mas a mãe, que vem com a menina, desfaz-lhe todas as dúvidas.
Eugénia anda em bolandas desde os três anos. A mãe, Iulia Stoica, 35 anos, terá viajado da Roménia para a Turquia ao engano. Agora conta a sua versão: «Fui trabalhar para ele, mas passados 15 dias disse-me que queria viver comigo. Ficou com a minha documentação e, como eu não percebia nada da língua turca, tive medo dele e fui obrigada a ficar. Ele era casado e vivíamos em bigamia». Como a bigamia é crime (há quase um século que a poligamia foi abolida no país), três anos depois de Eugénia nascer ainda nenhum dos pais a tinha registado.
E é nessa altura que a romena, apesar de afirmar que Aydin lhe retirara a documentação, tem uma ideia que lhe facilitará a fuga. Na Turquia, uma criança tem de ser registada até, no máximo, completar um ano de idade. Sendo assim, só o tribunal de menores poderia resolver o problema.
Em 2012, à revelia de Aydin, a mãe de Eugénia avança com o processo e consegue o certificado de nascimento da filha. Presta falsas declarações na Justiça, afirmando desconhecer a identidade do pai. De seguida, junto da embaixada da Roménia, consegue autorização para sair da Turquia.
Em 2013, depois de uma passagem pela Roménia, chega a Portugal e assenta arraiais em Foz Côa.
Faz pela vida, trabalha numa estufa agrícola, tem um novo companheiro e nasce o segundo filho. Eugénia, entretanto, cria laços aqui e faz amigos. Perdeu o contacto com o pai: passados cinco anos, mal o recorda. Mas este nunca desistira da filha.
O rapto
Cinco anos depois da saída da Turquia, o destino da criança está de novo em jogo. São 8h15 quando Eugénia é deixada pela mãe em frente à escola primária. De seguida, a mulher apanha uma boleia e segue para o trabalho.
Num dia normal, a miúda teria apenas de percorrer cerca de 100 metros para se juntar aos colegas. A essa hora, José Monteiro, gerente de uma estação de serviço à beirinha da escola, acabara de chegar. Dá pelo carro, cinza escuro, de matrícula espanhola, estacionado no local – e lá dentro um casal desconhecido.
Numa fração de segundo, quando está a abrir os portões do seu estabelecimento, os gritos de uma criança travam-lhe o gesto: «Ouvi-a gritar e vi um homem e uma mulher com a criança ao colo a atravessar a passadeira e a metê-la no banco traseiro da viatura». E, apesar de terem arrancado a grande velocidade, entrando na rotunda em sentido contrário, José Monteiro não deu mais importância ao assunto: «Pensei que era uma miúda a fazer birra porque não queria ir para as aulas. Só no outro dia, com as notícias do rapto, é que percebi. Eles tinham aquilo muito bem organizado».
A constatação do rapto
Sempre a acelerar e com o mapa da zona bem estudado, Aydin passa a fronteira de Vilar Formoso pouco depois. Às 13h30 já está no aeroporto de Madrid a comprar os bilhetes para Istambul.
Quando Iulia regressa a casa, pelas 17h30, e não encontra a filha, já a menina levantara voo. Estava ainda longe de imaginar o que acontecera: «Saí da Turquia sem dar conhecimento ao pai e nunca pensei que ele nos viesse a descobrir».
Depois de correr as casas das amigas da menina, consegue contactar o diretor da escola e recebe a informação de que a filha não tinha ido às aulas. Na sua cabeça correm os pensamentos mais macabros sobre o destino da filha e apresenta queixa na GNR. Só ao final do dia é que a PJ é informada – mas era tarde demais.
Ainda nessa noite, após ouvir Iulia e José Monteiro (o gerente da estação de serviço que assistira à entrada da menina no carro com matrícula espanhola), a PJ está na pista certa.
É Iulia quem acaba por se entregar: ao ser interrogada, perguntam-lhe pela identidade do pai da menina e, sem se dar conta, a mulher dá o nome de Aydin, que fora apagado da documentação oficial. Mas, sendo assim, o homem não pode ser acusado em Portugal de qualquer tipo de crime, pois não existe nenhum acordo ou decisão judicial válida que impeçam o pai de estar com a filha.
Iulia, entretanto, parece não ter entendido ainda que se encurralou: «Eu não fugi da Turquia. Abandonei o país porque ele me maltratava.» E o pai sabia? Ora, à pergunta lógica, acaba por assumir num português mastigado que foi ela, afinal, a autora do rapto: «Não, não lhe pedi o consentimento.»
A PJ rapidamente reconstituiu os passos do homem. Com os congéneres espanhóis, encontram a sua assinatura no aluguer do Opel Corsa, e o horário do voo que levou a criança de regresso à Turquia. Como estará agora Eugénia? Alguém pensou nisso?