Rodrigo Guedes de Carvalho. ‘Utilizo muito a escrita como saco de boxe’

O jornalista lançou recentemente o seu quinto romance: “O Pianista de Hotel”.

"O Pianista de Hotel" é o seu quinto romance. Fez o primeiro livro aos 20 anos, muito antes de sonhar ser jornalista. Escreve para se purgar, com as histórias, muitas vezes, de gente triste. Acredita que a escrita tem a dimensão quase mágica de o ligar ao mundo, fazendo-o melhor pessoa. Para ele, a escrita começa quando o jornalismo acaba, e a música está antes da escrita, como emoção em estado puro. N’"O Pianista de Hotel" entrecruzam-se histórias, com um fundo musical, que a maior parte das pessoas não estão disponíveis para ouvir, mas que nos dão parte da verdade da história.

 

Há 20 anos, quando saiu o seu primeiro romance, tivemos uma conversa em que defendeu que, para escrever, não era preciso viver as coisas. Nem todos tínhamos de ser como o Hemingway, estar na frente de batalha e ir para o ringue de boxe levar na tromba, e que escrever não exige ter vivido. Passados estes anos, continua com a mesma opinião?

Hoje, com 53 anos, digo sim e não. Ainda há pouco estava a reler The Books in My Life, do Henry Miller, que pouca gente sabe que existe – as pessoas normalmente ficam-se pelo Sexus, quando ele tem este livro fabuloso sobre os livros que amou e porque os amou -, em que ele diz que ao envelhecer percebeu que provavelmente teria sido melhor viver mais e ter lido menos. Acho que ambas as posições são possíveis. O trabalho de imaginação, eu posso fazê-lo sem o viver, porque tudo me é permitido no romance. Agora, ajuda a esse trabalho ter vida, quando mais não seja ir tomar café a Linda-a-Velha, como eu vou todos os dias, onde apanho diálogos maravilhosos que acabam por alimentar livros. Como a minha intenção não é «eu vou contar uma história que me aconteceu e é real», no limite, eu não preciso disso. Há muitas coisas que eu intuo ou invento e que não me obrigam a tê-las vivido. Mas há surpresas, há coisas que quando vivemos nos podem obrigar a mudar de opinião. 

 

Estava a colocar isso, não tanto pela veracidade da história, mas mais pela densidade dos personagens. Quando coloca no seu romance um homossexual que viveu 15 anos numa aldeia ou uma rapariga com uma infância problemática, isso não obriga, para além da empatia, a saber algo dessas vidas, para não se ficar por um simples boneco? 

O esforço é literalmente o da escrita. Disse uma expressão que para mim é muito importante: que não sejam bonecos. Cada vez menos gosto de rótulos e gavetas: «os homossexuais comportam-se assim, os empregados de restaurante comportam-se assado e os médicos comportam-se…» As pessoas são todas diferentes, tentei dar-lhes muitas esquinas imprevisíveis em relação ao estereótipo que têm sobre elas. Neste livro há, a páginas tantas, uma certa ‘granada’ em relação à homossexualidade da personagem. Sou um apaixonado por pessoas, estou convicto de que elas são todas diferentes. Fui no outro dia ver a exposição sobre o Almada Negreiros, ele tem um texto belíssimo sobre a singularidade absoluta dos rostos: não há dois rostos iguais. Eu defendo isso em relação às pessoas. Crio as pessoas do nada e tento que elas sejam verosímeis aos olhos de quem lê, não porque elas existam de verdade, mas porque têm coerência na ação. Mas elas têm sempre esquinas imprevistas para dar um aspeto muito singular e fugirem aos rótulos. No caso do homossexual, houve uma pessoa que me fez uma pergunta: «Porquê abordar o tema da homossexualidade?» Mas eu não fiz como tema. É uma das características daquela personagem, como poderia ser sócio do Benfica e macrobiótico.

 

Teve uma vida recatada… vou mudar a pergunta, porque pareço estar a falar da mulher de Michel Temer (risos). O que quero dizer é que, originariamente, é um beto da Foz. 

É verdade. Mas não sou tão beto como se pensa. Tenho experiências de vida das quais não faço alarde. Uma das coisas que tenho, que herdei do meu avô, que mais aprecio: é que sei estar num cocktail de uma embaixada e estar num tasco. Sei exatamente como me comportar e gosto desses dois ambientes, retiro sempre qualquer coisa dessas diferentes circunstâncias. Tenho um lado mais invisível, aos olhos das pessoas, que é um lado que me deu a experiência de vida. 

 

Estava a pensar de onde tinha retirado essa capacidade e essas vivências tão diferentes. Como jornalista, vai muito cedo para pivô de telejornal, mas continua a fazer reportagens. Lembro-me de uma, com as forças especiais da polícia colombiana que combatiam narcotraficantes, e outra, que ganhou um prémio internacional, sobre as urgências dos hospitais. Isso ajudou-o a conhecer outros ambientes?

Sou filho de médico e esse ambiente é algo que conheço bem. Curiosamente, já me apareceram duas leitoras, e enfermeiras, que sentiram que este ambiente estava muito bem apanhado no meu livro. Além disso tudo, tive uma juventude muito preenchida. Não vou entrar em detalhes, mas cometi muitos excessos e conheci muitas realidades. Apesar de ser um beto da Foz, estive num liceu que era o Garcia de Orta, onde havia alguns betos, mas também havia pessoas de outros extratos sociais que aprendi a conhecer e a apreciar. 

 

Acha que o jornalismo mata a literatura?

O jornalismo não mata a literatura. Ainda outro dia, a propósito de uma outra entrevista, estava a fazer uma contabilidade e cheguei à conclusão de que quase 70% daqueles que as pessoas apreciam como escritores tiveram alguma experiência como jornalistas. O jornalismo sempre esteve muito ligado à literatura. Ele não a mata, não consegue é chegar à literatura. Ele não é mau nem bom, é assim. O jornalismo tem características: temos uma caixa fechada com um teto que se chama factos e temos de ouvir as duas partes. Temos limites e regras. A literatura começa acima dessa caixa, quando eu tenho a liberdade de explorar para além dela. A realidade interessa-me pouco. Interessa-me emocionar e contar uma história e, se me apetecer, não dou voz às duas partes, dou só a uma delas.

 

No seu livro, o narrador está sempre muito presente e vai-nos conduzindo conforme a sua vontade mas, a páginas tantas, há uma crítica ao jornalismo quando se fala do caso de um personagem médico que é abordado na comunicação social, em que a imprensa de referência não identifica o médico, a outra sim e, a certa altura, a de referência passa a fazê-lo, sem presunção de inocência, exatamente como a comunicação social sensacionalista. Como vê o jornalismo hoje?

Estamos no centro de um furacão que só vamos conseguir analisar no futuro. Está toda a gente desorientada. A guerra de tiragens e audiências está ao rubro, não porque as empresas queiram ganhar muito dinheiro, mas porque já chegaram, muitas delas, ao limiar em que podem não sobreviver. O que vejo na comunicação social (jornais, rádios e televisões) é que há muitas reações que são ditadas pelo medo. Pelo medo de falhar. Vejo situações em que, em vez de equacionarmos como proceder, como os outros estão a fazer, o receio de ficarmos para trás não dando esse passo leva-nos, às vezes, a dar passos impensados. Dou um exemplo: não vou falar sequer do vídeo divulgado pelo “Correio da Manhã”, mas de um outro em que se via uma miúda a apanhar uma enorme carga de porrada, uma cena de uma imensa violência. Acho mesmo que os meios de comunicação social acabaram todos por dar aquilo, num reflexo de cão à volta do rabo: a SIC deu aquilo porque a TVI já estava com aquilo na ar, a TVI emitiu porque a RTP estava com aquilo no ar. E, de repente, não há um tempo para pensar se devem ou não colocar esse vídeo no ar.

 

Não há autonomia suficiente dos jornalistas para poderem reagir à pressão das vendas e audiências?

Às vezes, não tem tanto a ver com as vendas. Nem os jornalistas nem os editores estão a calcular os lucros e as vendas. Às vezes tem simplesmente a ver com a pressa. Sabe que, mesmo no nosso tempo, dar uma notícia em primeira mão era importante. Tínhamos sempre orgulho em dizer: «Fomos nós que demos a cacha.» Mas havia outras formas de fazer a diferença em jornalismo. Agora é praticamente só a pressa.

 

Tem a ver com a internet?

Precisamente. Hoje há um fenómeno muito curioso, e vamos ver se não é perigoso. Antigamente tínhamos a televisão e a rádio, com as suas velocidades, e os jornais que publicavam as coisas no dia seguinte. Hoje, se só utilizarmos o computador ou o digital, para todos efeitos, o Público e a SIC Notícias estão em igualdade de circunstâncias e a concorrer. Pode escolher se vai a um ou a outro em qualquer momento. Qualquer um deles está a dar a última hora. Isso aumentou imenso a febre da competição e a pressa de ser o primeiro a divulgar. Eu espero que haja, em todas as redações do país, momentos em que pensam e se arrependem de ter reagido de uma determinada forma devido à pressa de ser os primeiros a dar a notícia, devido a terem saltado os passos de analisar, com tranquilidade, se deviam ou não deviam ter dado aquela notícia. Repara que muita da comunicação social está num dia a colocar uma imagem de uma enorme violência e, no dia seguinte, está a analisar com psicólogos as consequências para as pessoas da exibição na véspera das imagens com enorme violência. 

 

Uma coisa que está muito presente no livro é a questão da violência sobre as mulheres. Usando, como gancho de atualidade, a sua intervenção sobre essa matéria nos Globos de Ouro, e o facto de ter sido apelidado, dias depois, de “ignóbil farsante” por Manuel Maria Carrilho, no seu mural de Facebook…

Fui apelidado de ignóbil farsante (risos)?

 

Sim. Esta questão da violência sobre as mulheres é algo que o preocupa muito?

Sim. Em relação aos Globos de Ouro, estou à vontade porque, para quem está atento às minhas posições fora do jornalismo, aquilo não é novidade nenhuma. Já me manifestei várias vezes sobre a violência contras as mulheres. No caso de Carrilho, fui a julgamento como testemunha da Bárbara Guimarães. Fiz um hino para a APAV [Associação Portuguesa de Apoio à Vítima] sobre a violência contra as mulheres. Nos meus espaços de crónica, na TV Mais, Activa, que me permitem falar mais como cidadão do que como jornalista, isso está sempre presente. É uma coisa que me preocupa imenso porque convivi com ela – eu não faço alarde do que faço na vida privada como cidadão e as pessoas não sabem se eu faço ações de voluntariado. A realidade que eu conheci é aterradora. Mulheres que vivem 24 horas por dia no terror com medo do que vai acontecer no momento seguinte. Mulheres que seguiram todos os passos que lhes disseram para dar: «Tens de o abandonar. Não podes viver nesse inferno. Tens de fazer queixa na polícia.» Elas deram esses passos todos e depois acabam por morrer. Isto é das realidades mais assustadoras que existem. Do ponto de vista dramático/dramatúrgico, é uma coisa forte a que acabo sempre por regressar.

 

Está muito presente nos livros. É uma experiência que o impressiona e toca?

Quando quero falar do medo, de viver no medo, vou sempre a esta situação. É o extremo do medo. Quem nunca viveu isso ou não conheceu alguém próximo que tenha vivido isso, não sabe como é assustador.

 

Essa violência não está presente em muito mais zonas da nossa sociedade? Para além destes casos extremos, não há aquilo a que alguns manifestantes chamaram uma “cultura de violação” que naturaliza e legitima a violência contra as mulheres?

Há e está ligada a isso. Nós evoluímos e a civilização deu passos, mas a imagem que me assalta sempre sobre a violência contra as mulheres é um cartoon sobre a pré-história: um homem vestido de peles com uma moca na mão e a arrastar uma mulher pelos cabelos. Eu não consigo contar quantas notícias dei no “Jornal da Noite” da SIC sobre estes casos de violência, a banalização da violência que depois vai dar à carga de porrada, de que falávamos, que deram à miúda e puseram no Facebook. Aquilo que agora se grava em vídeo e se difunde nas redes sociais torna o fenómeno corrente e aprofunda a ideia de impunidade. Eu não conheço nenhum trabalho sério sobre o que realmente aconteceu nos casos de violência doméstica: quantos foram condenados? Quais foram as penas para os agressores? A facilidade com que cometem esses crimes, a tranquilidade com que vão a julgamento e a normalidade com que são libertados revela um clima de impunidade.

 

Acha que esses comportamentos ainda se enquadram em ditados populares do tipo «entre homem e mulher não metas a colher»?

Acho. Agora, por causa da minha intervenção nos Globos de Ouro, algumas pessoas foram-me fazendo chegar a opinião que era publicada nas redes sociais. Muitas eram elogiosas, mas um número apreciável de pessoas, incluindo muitas mulheres, diziam que eu não tinha nada que falar sobre aquilo, acrescentando sempre argumentos deste tipo: «Nós não sabemos se ela não tem culpas no cartório», «nós não sabemos se ela não merecia umas palmadinhas no rabo». Esta mentalidade está disseminada. Fomos sempre aceitando isso enquanto sociedade. Acho que é uma questão de educação. Só que vai demorar. Uma das mulheres que eu conheci que estava numa casa-abrigo, para onde fugiu com dois filhos, o mais velho tinha oito anos; e, ao fim de uma semana, essa criança estava a agredi-la como via o pai fazer. Um miúdo de oito anos. Portanto, é complicado.

 

Porque escreve? Há uma categoria, que não me parece o seu caso, de pivôs de telejornal que escrevem porque são conhecidos, e isso é um chamariz que agrada às editoras, mas o Rodrigo Guedes de Carvalho por que razão escreve?

Eu sei que há muita gente que me quer incluir nesta categoria. Normalmente, para me reduzir. Eu já disse que escrevi o primeiro romance com 20 anos, ainda não pensava ser jornalista. Sempre foi algo que quis fazer. Com o trabalho, não pude escrever tanto como quereria, mas assim que pude continuei. Mas eu escreveria mesmo que fosse eletricista ou barman, é assim que eu encaro. Depois foi acontecendo que outros colegas de profissão ou de emprego – é assim que eu encaro o jornalismo – se foram aventurando no terreno dos livros e eu fui colocado nesse conjunto, como se fosse mandado para lá com a maré. Mas, felizmente, há muita gente que não me põe nesse rol. 

 

O que procura quando escreve?

Procuro uma terapia. Sinto-me uma pessoa melhor quando estou a escrever. Estou mais calmo, mais tranquilo e mais atento aos outros. Se estou a escrever sobre o drama da falta de comunicação de um casal, não faz sentido que, ao sair do quarto, não tenha aprendido com o que escrevi e não me torne melhor com a minha mulher, na minha relação, e com os meus amigos. É nesse sentido que tem sido uma grande terapia. Depois utilizo muito a escrita como um saco de boxe para dar uns socos que não posso dar como jornalista. Na minha profissão, estou a dar uma notícia e apetecia-me dizer, «este cabrão», que é uma coisa que não posso. 

 

Nem «dr. cabrão»?

Não (risos). Mas na escrita posso. Ela começa onde a minha linha vermelha do jornalismo acaba.

 

De alguma forma, todos os capítulos do seu livro têm uma relação com a música, seja com estranhos instrumentos musicais, como a melódica, até à violoncelista morta e ao pianista de hotel. Há mesmo uma passagem em que se diz que em determinados sítios não conseguimos ouvir uma música, mesmo que ela seja uma obra de arte. A música é importante para compreender a vida?

Em muitos romances há um elemento forte que acaba por tocar as personagens de forma diferente. Repare que eu faço um romance, que é perpassado pela música, em que só aparece um músico, um pianista de hotel; o resto dos personagens principais tem só relação com a música. A música foi a minha verdadeira primeira paixão, mesmo de criança, que nunca se concretizou na minha vida e agora já é tarde. Tinha essa ambição, gostaria de a colocar num livro, que é hoje a minha matéria e a minha arte, e de lhe fazer uma declaração de amor. O que lá está é o que eu acho da música: a literatura começa quando o jornalismo acaba, e a música quando a literatura acaba. Há coisas que a música nos dá que as palavras não conseguem dar. 

 

De alguma forma remete-nos para aquilo que é a verdade das personagens no livro?

Sim. A música tem um caráter imediato na emoção que nenhuma outra arte tem. Eventualmente, talvez uma pintura a ser descerrada consiga ter essa velocidade. A música tem algo de absolutamente pré-histórico ou tribal. Se eu bater um batuque ou der uns acordes, as pessoas sentem logo algo que eu, num poema ou num romance, vou demorar a conseguir dar. É essa inveja desse poder da música que me levou a tentar escrever sobre ela. 

 

No seu livro há muitas coincidências que podem acontecer e que nunca se sabe se falham. Passa-se o tempo todo à espera de um encontro. 

A cabeleireira a que a Teresa [Dimas, jornalista e mulher do escritor] foi tem uma expressão maravilhosa. A Teresa disse-lhe que eu tinha escrito um romance. Ela disse: «Então casam no fim.» A Teresa respondeu-lhe que, por acaso, não. «Então não é um romance», respondeu ela. (risos) O que é maravilhoso. O que eu quis dar ao leitor é essa ideia de que há a possibilidade de um comboio que parte de Faro e outro de Braga se cruzarem. No meio há muitas possibilidades: vão chocar? Vão parar? Quero provocar a sensação de que há muita coincidência potencial que pode acontecer.

 

São salvaguardadas todas as possibilidades ao dizer, no início do livro, que o leitor é que faz parte da leitura.

Essa parte foi escrita no fim. Eu comecei o livro normalmente. Comecei a introduzir a Maria Luísa. Depois senti a necessidade de explicar a melódica, e depois fui fazer aquela graça. Fiquei feliz por muita gente ter caído que nem um patinho e recebi mensagens a dizer: «Seu cabrão [ponha um pi sobre o palavrão], eu fui procurar a primeira frase do romance.» Quando escrevo isso, é uma forma de mostrar que costumo ler pessoas e sei como elas funcionam. Há um cliché na literatura que diz que os romances se veem logo na primeira frase. O que é falso. No livro, o leitor que se interessa percebe que está a ser lido. O elemento de identificação para um leitor é quando o livro tem a capacidade de nos ler. A pessoa sente-se identificada nesse momento. Percebe que há alguma coisa dela dentro das páginas. Nesse sentido, está a ser lida.

 

Há uma coisa complicada nos livros que são as descrições das cenas de sexo.

A língua portuguesa é muito dura. Há uma diferença brutal entre o português do Brasil e o nosso. Quando se fala da bundinha e do pau, aquilo tem alguma graça quando se diz e não tem o peso de algumas das nossas palavras mais vernáculas. Eu arrisquei nesse sentido porque, para mim, as cenas não são de sexo. Não pensei, «agora vamos provocar alguma sedução e um certo ardor no leitor». Elas são cenas. Uma é de uma enorme solidão e a primeira é de um enorme desnorte, sobre um homem que está à procura da sua identidade sexual. Os termos utilizados – gosto pouco de paninhos quentes – são crus. Os paninhos quentes podem matar uma cena.

 

A história da identidade das pessoas em relação aos seus também está muito presente. Quando se vê ao espelho vê o seu pai?

Vou vendo. Vou vendo fisicamente. Os meus, para mim, são aqueles que me marcam a vida. Alguns são de família, outros não são. Eu não tenho essa ditadura de sangue. Sempre que alguém me diz «a família e o sangue é que é», eu respondo que isso mata à partida a ideia de qualquer adoção: nós já estamos a negar a um miúdo que adotemos um amor igual. Houve pessoas que me marcaram e este livro fala sobre os nossos mortos. Não sei se é uma consciência de amadurecimento e envelhecimento. Mas eu sinto-os muito presentes. Alguns deles, digo-lhes o nome. Penso que enquanto dissermos o seu nome, eles estão cá. E é uma forma de a nossa passagem pela vida não ter sido em vão. A homenagem que faço aos mortos é que, no que depender de mim, não os esquecerei. 

 

E agora chega a pergunta dos Monty Python: qual é o sentido da vida?

(Risos) É o maior cliché possível: é procuramos ser felizes. Eu trato muito de pessoas infelizes nos livros como uma purga, como algo que vejo muito e não gostaria de ver. Já tive duas pessoas cuja análise do livro foi lacónica. Disseram-me: «Isso é uma romance sobre o amor.» É-o na sua urgência, na sua ausência. O que falta aqui, se tiramos tudo, é o amor. Aos 53 anos, um tipo já não tem medo das suas emoções. E o sentido da vida é isso.