Miguel Beleza: “Eu pensaria duas vezes antes de investir em Portugal”

Ex-ministro de Cavaco Silva e antigo governador do Banco de Portugal considera o Orçamento do Estado demasiado optimista. E está preocupado com a instabilidade fiscal.

O que acha deste Orçamento do Estado (OE)?

Gostava de começar por dizer que conheço o primeiro-ministro. Não sou íntimo, mas tenho-o como uma pessoa íntegra e muitíssimo bem intencionada. Mas em relação ao orçamento, preocupa-me o aumento de alguns impostos, preocupam-me algumas associadas, como a redução do horário de trabalho na função pública para 35 horas, não me parece nem justo nem eficiente. E preocupa-me algum otimismo.

Nas previsões macroeconómicas? 

Eu não queria estar a criticar com dureza, sou o contrário do ‘quanto pior melhor’. Desejo a maior sorte. Gostava de conhecer o professor Centeno, é uma pessoa interessante, tem excelentes credenciais académicas. Poderá ter alguma verdura. É muito perigoso quando se acredita nas próprias previsões. No fundo, às vezes mais vale o instinto do que a previsão. E o meu instinto é que o cenário macroeconómico é demasiado otimista.

Era o momento de virar a página da austeridade, como diz o primeiro-ministro?

Havia uma certa fadiga da austeridade. Poderia ser o momento para aliviar rendimentos, mas eu preferia que fosse pela redução de impostos e não por aumento da despesa pública.

A reversão dos cortes salariais não faz sentido depois de toda a contestação a nível constitucional?

Se calhar foi um pouco rápido demais. Devíamos primeiro ver como corre a execução e depois fazê-lo com mais prudência.

Não há outra maneira de cortar despesa?

Há, mas pode ser mais custosa. A principal componente da despesa são transferências sociais – pensões e despesas semelhantes. E a a maior despesa com funcionários públicos é na educação, por causa do número de funcionários. Poder-se-ia ter cortado de outra forma, mas não sei se seria melhor. 

Está a haver uma discussão sobre se há descida ou subida da carga fiscal. O que vai afinal acontecer?

Não sei se desce. Aqui faço a exortação do que dizia o Paul Samuelson nas aulas – já morreu e era um excelente professor. ‘Vocês não façam previsões. Se não tiverem alternativa, então façam muitas, porque as pessoas têm pouca memória e por razões estatísticas têm de acertar de vez em quando’. Era absolutamente verdade.

O que pensa da transferência de impostos do IRS para o consumo?

O sistema fiscal devia ser muito simples. Devia haver uma taxa de IVA única para todos os produtos. Não se faz política social com o IVA, faz-se com o IRS. Devia haver um IRC tão baixo quanto possível. E em vez de imposto sobre o rendimento devia haver um imposto sobre a despesa.

Que imposto é esse?

É um IRS em que se retira a poupança para efeitos de tributação. Penso que já existe num país nórdico. Pode ser tão progressivo quanto se queira – devia até haver um imposto negativo para os rendimentos mais baixos. E não é difícil de pôr em prática. Seria preciso definir quais são as formas aceitáveis de poupança – ações, depósitos, imobiliário – e isentar de impostos. Seria muito mais eficiente e justo. Diz-se que só poupam os ricos, mas não é verdade. Retirando algumas franjas, algumas pessoas que de facto não têm hipótese nenhuma e os super-ricos, o resto da população tem taxas de poupança relativamente semelhantes.

O Governo argumenta que uma faixa da população perdeu a possibilidade de poupar, com os cortes. Nesse sentido, a devolução de rendimentos não é também positiva para a poupança?

Oxalá. Não tenho nada contra as pessoas terem mais rendimento e aumentarem o bem-estar. Quem sou eu para julgar. O Estado não deve dizer a cada um aquilo de que deve gostar. Mas o aumento de rendimento muito provavelmente dará lugar a um forte aumento de importações.

Este aumento dos impostos sobre combustíveis pode ter repercussões na economia?

Com certeza que não vai reduzir custos. E, portanto, não sei se é muito oportuno. Não sou a favor de uma descida de impostos sobre combustíveis, mas também não sou favorável ao agravamento. 

Por causa da estabilidade fiscal?

Para o investimento é preciso previsibilidade, estabilidade e segurança. Estabilidade política não vejo por que não possamos ter durante algum tempo. Previsibilidade, vamos ver. Segurança, duvido. Se fosse um investidor, pensava três vezes antes de decidir se investia em Portugal ou no exterior.

O primeiro-ministro classificou este orçamento como responsável. Concorda?

Irresponsável não é. Pode ser um pouco otimista, mas também não é um orçamento disparatado. É um orçamento com aspetos que não gostaria de ver, mas irresponsável não é. É forte demais.

Houve negociações intensas com Bruxelas para o Orçamento. Ganhámos com isso? 

Ganhámos, porque o OE ficou mais sensato.

Mas quem cedeu mais?

Não sei. Nem me interessa muito, para ser sincero. Isto não é um campeonato, não é um braço-de-ferro entre Portugal e a Europa. Foi um contributo positivo. Vamos ver como vai ser a votação e, sobretudo, como será a execução. Aí é que tenho algum temor.

Qual seria o cenário mais benigno até ao final do ano?

O cumprimento das metas de receita e de despesa e um ambiente externo favorável.

Se isso não acontecer, há quem fale na possibilidade de um novo resgate, se a agência DBRS baixar o rating. É um fantasma que se levanta ou é um risco real?

Tenho esperança de que não aconteça, mas pode acontecer. Mas lá estamos nas previsões. Não vale a pena fazê-las neste momento.

Uma das novidades recentes é que não se cumpriu o défice de 3% em 2015, mesmo sem o efeito Banif. Pode ter havido eleitoralismo na execução orçamental do ano passado?

É muito difícil resistir a essa tentação. Não creio que tenha sido uma coisa disparatada, e até é legítimo que aconteça. Um político bem intencionado e honesto pensa que o que está a fazer é positivo para o país, é legítimo que se esforce por ganhar eleições. Até que ponto estamos na legitimidade razoável, não sei. Não vi com olhos cuidados o que aconteceu no final do ano. A ideia que tenho é que não foi fora do normal face a outras épocas.

Mas houve uma questão particularmente polémica: anunciou-se a devolução da sobretaxa, o que não se verificou.

Não sei o que aconteceu. Tenho o prazer de conhecer a ministra das Finanças do governo anterior e penso que é uma pessoa muito capaz. Mas não lhe fiz nenhuma psicanálise. Não sei qual foi a sua motivação.

Que ministro das Finanças mais apreciou?

Apesar de tudo, com tudo somado, revisto e ponderado, Vítor Gaspar. Fez o que era preciso fazer em muitos domínios. Em alguns aspetos, como a parte que coube aos reformados, talvez tenha sido demasiado pesada. Mas também não sei que tipo de alternativas teria. E foi um ministro com um ambiente pesado. Eu, quando era ministro, andava a pé, andava de metro, não tinha segurança, não tinha problema nenhum. O Vítor Gaspar precisava de segurança apertada. E quando se demitiu foi porque já não tinha qualquer espécie de hipótese.

Houve intensas negociações com Bruxelas por causa do Orçamento. Foi algo inédito?

Incomoda-me nunca conseguirmos fazer as coisas sozinhos. É sempre preciso vir alguém pôr-nos na ordem. É uma chatice. Mas não é novo, vem muito de trás na história. Nas outras intervenções do FMI, também houve uma vigilância muitíssimo apertada, quer em 1977 quer em 1983-1984, sobretudo. E foi um programa muito bem sucedido.

Comparando os anteriores programas ainda com a desvalorização do escudo, Portugal está a sair deste programa com um crescimento fraco. O euro não cria constrangimentos?

Não. Que tipo de taxas de juro teríamos sem a moeda única, com liberdade de circulação de capitais? E quem consegue neste momento controlar capitais, em que com um telemóvel se consegue fazer uma transferência para onde se quiser, em segurança e sem custos? Os capitais são livres. 

Então porque é que desta vez há um crescimento tão baixo? Depois do programa da década de 80 houve um ano em que chegámos a crescer mais de 7%.

Foi num ano particularmente favorável. Os preços de petróleo estavam baixíssimos. Foi um ano de recuperação dos nossos principais parceiros. Neste momento, a conjuntura internacional não é tão favorável.

Apesar de ter uma visão benigna do euro, o que pensa da arquitectura institucional da moeda única? Há quem aponte falhas.

Sou a favor de mais coordenação. Isso é inevitável, apesar de não ser fácil, porque os parlamentos nacionais vão querer manter as suas prerrogativas. Já houve um avanço muitíssimo importante, que foi a união bancária. Sou a favor dos Estados Unidos da Europa.

Defende então uma espécie de orçamento federal, mais pujante?

O mais possível.

O Tratado Orçamental não está a trazer limitações contraproducentes?

Sou totalmente a favor do Tratado Orçamental. É a única maneira de termos confiança no futuro da Segurança Social, por exemplo. É preciso reforçar a Segurança Social, porque a demografia é catastrófica.

Mas o Tratado favorece políticas pró-cíclicas que acentuam a queda da economia em momentos de recessão.

Claro que sim. Mas o problema é que a alternativa é pior. Aí há ‘trade offs’. Sou muito amigo do João Ferreira do Amaral, a voz mais eloquente contra o euro. Mas ele não tem razão. Veja-se as taxas de juro da Grécia, que até está na moeda única. Imagine-se as taxas de juro de Portugal com uma taxa de câmbio flutuante. O país secava.

Na discussão europeia, às vezes são apontados dois pólos: os países nórdicos são os bons alunos e os países do sul são os incumpridores. Como encara esta simplificação?

Não é exata. Já houve episódios de grandes dificuldades na Dinamarca, na Suécia. Taxas de juro a 500% e coisas semelhantes. Não gosto de pôr etiquetas. Nós não somos preguiçosos, trabalhamos mais horas do que a maior parte dos países do norte, trabalhamos é mal. Não gosto de que precisemos sempre de alguém para nos mostrar como é que se fazem as coisas, mas, se calhar, mais vale. É como os miúdos que não gostam que os pais lhes ralhem. Eu não concordo que se bata nos miúdos, mas um castigozito uma vez por outra não faz mal nenhum.

Nota:

Esta foi a última entrevista que Miguel Beleza deu ao semanário SOL, a 13 de fevereiro de 2016.