“Eu não sou noviça”, vocifera Paula, para depressa perceber que melhor será ajustar o tom: “Não quero estar aqui.” Mas rapidamente perceberá tudo. Paula, arrastada pelo pai que não tinha como a sustentar para o Convento de Odivelas, onde já estava a sua irmã, rapidamente encontrará forma de sobreviver nesta casa de Deus que será tudo menos justa. “Aos olhos de Deus, somos todas iguais, sim”, diz-lhe a irmã. “Aqui dentro, continuamos todas diferentes.” E a história pode até ter sido essa para todas, mas não seria para Madre Paula, primeiro amante do conde de Vimioso, depois do rei D. João v.
Desta figura, Patrícia Müller ficou a saber há uns anos quando lia um jornal, já não sabe a propósito de quê, apenas que não mais a largou. “Acho que a história funciona porque há uma tensão que vem do facto de ela estar presa num convento – mulheres presas dão sempre histórias extraordinárias.” E depois de pesquisas pela Torre do Tombo e pela Biblioteca Nacional, mais o apoio da historiadora Máxima Vaz, veio a contá-la num livro, “Madre Paula” (Edições Asa, 2014), que adaptou depois para a série homónima que se estreia na próxima quarta-feira na RTP. O trabalho levou-lhe um ano. “Reli o livro à procura de uma abordagem, de um ângulo, e cheguei à conclusão de que a história de D. João V com a Madre Paula seria o centro, mas que precisávamos também de juntar um lado mais político, do que era a corte, o Portugal social”, diz. “Não tinha sentido fazer esta série sem mostrar o que era Portugal no séc. xviii. O objetivo é que as pessoas conheçam não só este romance, que é verdadeiro, existiu, mas também o país do século xviii.” Daí que, se no livro, a história da relação que o rei, que manteve ao longo da vida inúmeras relações com amantes, com Paula seja contada pela própria, na primeira pessoa, na série ela tenha sido adaptada para o ponto de vista do espetador.
quem seria madre paula? Sobre a vida de D. João v, não faltam registos históricos. “Ele tinha muitas facetas: era um estadista incrível. Foi o rei que mais dinheiro teve, viveu num período de paz, nunca foi para a guerra, e, portanto, era um esbanjador, e um homem muito culto também. Mandou construir as bibliotecas mais importantes, hospitais, o Aqueduto das Águas Livres é dele, era um homem com uma visão incrível, mas cheio de contradições, porque também gostava de ir para conventos para ter casos com freiras.” Só no Convento de Odivelas, para onde se retirava por longos períodos para se encontrar com Madre Paula, teve três filhos. Um dela, que Patrícia Müller acredita que fosse “muito culta”. Sabe-se, por exemplo, que D. João v (Paulo Pires) lhe enviou professores para o convento e acredita-se que tenha acabado por desempenhar um papel de conselheira do rei – conta-se que pela altura em que a corte já se tinha apercebido da sua existência, era apelidada por alguns como um “novo ministro” do monarca português. “Temos, por exemplo, cenas em que eles estão na cama e em que ele lhe fala no aqueduto, com ela a dar-lhe conselhos sobre o que devia fazer.”
Se processos de recriação de personagens históricos nunca serão fáceis, a autora explica como chegou à personagem interpretada por Joana Ribeiro, que recentemente terminou também, com Adam Driver, Olga Kurylenko e Rossy de Palma, entre outros, a rodagem de “O Homem Que Matou Dom Quixote”, o filme do ex-Monty Python Terry Gilliam a partir da obra de Cervantes. “Quem era esta mulher? Há coisas que estão escritas”, começa. “Sabe–se, por exemplo, que o rei tinha um amigo que era o Caetano Sotomayor, conhecido como o ‘Camões do Rossio’, que escrevia uns poemas muito grosseiros, com muitos palavrões, que aparecem no livro, e que os mostrava ao D. João v e à Paula, que se riam muito com aquilo, o que é assustador porque aquilo era grosseiríssimo. Sabe-se também que ela tinha mau feitio: está escrito que um dia, porque ele se atrasa, ela parte um relógio que ele lhe tinha dado”, exemplifica a autora do livro e da série sobre o tipo de episódios históricos que a ajudam no processo de criação das personagens. “A partir destas histórias, vais imaginando personalidades.”
Escritas estão também algumas descrições físicas sobre a freira preferida de D. João v, a mulher com quem manteve uma relação por mais tempo fora do casamento, ao longo de 13 anos. Que era “trigueira”, que tinha “um grande buço” – coisa em que Máxima Vaz tem dificuldade em acreditar: “Com todas as mulheres que teve, seria impossível ele ter-se apaixonado por uma mulher feia.” A preocupação foi retratar a paixão intensa que os dois terão vivido e que terminou sem que se saiba até hoje porquê, mas que numa história romanceada se resolverá com a intervenção da rainha, Maria Ana de Áustria (Sandra Faleiro). “Tomo várias liberdades”. diz Patrícia Müller. “Não estou a fazer um livro de História, estou a fazer um romance histórico, baseado em factos reais. E com a Paula tomei toda a liberdade poética: supus mesmo que o rei a achava maravilhosa porque era linda de morrer e pelo seu mau feitio, que o excita, e que gostam mesmo de estar um com o outro, porque são 13 anos. Podes supor que uma miúda pobre com algum pelo na venta, que ela tinha, chegue a um convento e não goste do que vê, e que, portanto, tente fazer diferente. No fundo, ela é uma rebelde.”