Guerra entre primos. Depoimento de Ricciardi arrasa Salgado

José Maria Ricciardi não poupa o primo nos negócios ruinosos que este terá feito. Fala em luvas que terão sido pagas e como Salgado tudo fez para impedir a OPA da Sonae à PT

No depoimento que prestou no âmbito da Operação Marquês, Ricciardi afirma que Salgado fez bluff na questão da compra da participação na Oi. O primo do líder do BES falou também sobre a relação próxima entre Salgado e Sócrates.

No testemunho que deu, no início de maio, no Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) de Lisboa, no âmbito da Operação Marquês, José Maria Ricciardi arrasou o primo, Ricardo Salgado – dos trabalhos desenvolvidos na compra da Telemar/Oi por parte da Portugal Telecom (PT) à relação com o antigo primeiro-ministro José Sócrates e à existência do saco azul do Grupo Espírito Santo (GES), o antigo líder do Banco Espírito Santo de Investimento (BESI) não poupou críticas ao ex-“dono disto tudo”.

Durante o depoimento, Ricciardi descreveu a intervenção do BESI na procura de alternativas ao investimento da PT na VIVO, operadora de telecomunicações brasileira criada entre a empresa portuguesa e a espanhola Telefónica, que acaba por ser vendida na sua totalidade a esta última. Tais trabalhos eram exigidos por Salgado, que queria singrar no mercado brasileiro – surge então a oportunidade de adquirir uma participação na Telemar, empresa que está na origem da Oi. O líder do BESI sempre se mostrou contra este investimento, apesar de o primo ser um dos que mais defendiam a entrada no negócio.

Quando se opôs à venda da participação na VIVO, Ricciardi afirmou que Salgado contrariou essa ideia, defendendo que em causa estaria um negócio que poderia trazer dividendos ao Banco Espírito Santo (BES). Ricciardi disse ainda que se mostrou contra a entrada na Telemar/Oi desde o início, defendendo que se tratava de uma empresa com pouca solidez e com problemas de gestão, mas que o BESI continuou a trabalhar neste investimento por insistência de Salgado.

Recorde-se que a PT vendeu a Vivo por 7,5 mil milhões de euros e comprou 22% da Oi por 3,8 mil milhões. Este foi considerado um negócio de risco – a Oi era uma empresa muito grande mas muito endividada, a necessitar de capital para reduzir passivo e investir em tecnologia. O Ministério Público suspeita que o negócio da compra da empresa brasileira tenha envolvido pagamentos ilícitos de dezenas de milhões de euros, parte dos quais terão beneficiado Ricardo Salgado e o GES.

Em julho de 2015, Ricardo Salgado afirmou publicamente que “o colapso da Portugal Telecom (PT) dá-se, e esta é uma opinião pessoal, devido ao negócio com a Oi/Telemar. Foi muito pior para a PT o investimento na Oi/Telemar do que o contributo [da compra de 900 milhões de euros de dívida] do Grupo Espírito Santo. O tempo encarregar-se-á de me dar razão”. O antigo líder do BES tentava assim dissociar-se do negócio entre a operadora portuguesa e a empresa brasileira. No entanto, Ricciardi disse no DCIAP que esta oposição pública não passava de um jogada de bluff: Salgado era a favor do negócio e terá insistido para que o BESI realizasse vários trabalhos de estudo quanto às operações necessárias para o que investimento fosse consumado. O primo de Salgado disse ainda que foi este último quem decidiu a entrada da PT na Telemar/Oi, desvalorizando o papel da golden share usada por José Sócrates, que tinha como objetivo impedir que a PT vendesse a posição que tinha na Vivo aos espanhóis até que fosse encontrada uma solução no Brasil. Ricciardi acredita que a influência de Salgado junto da administração da PT terá sido fulcral para a realização do negócio ruinoso.

O medo da OPA No seu testemunho, Ricciardi terá confirmado aquilo que o MP já suspeitava: Salgado terá usado a sua posição e o seu poder financeiro para influenciar a decisão em relação à oferta pública de aquisição (OPA) da Sonae à PT, em 2007.

Este cenário iria enfraquecer a posição do GES na operadora portuguesa, um cenário que desagradava a Salgado. Por isso, o ex-líder do BES decidiu fazer tudo para travar esta proposta da Sonae – o MP suspeita que Salgado tenha pago contrapartidas não só a José Sócrates, que começou por ser favorável à OPA mas progressivamente se aproximou de Salgado, como também a outras entidades, por forma a conseguir apoio para travar esta oferta.

Ricciardi afirma que se apercebeu do receio existente dentro do GES quando começaram a ser desenvolvidas certas ações dentro do grupo, nomeadamente a concessão de financiamentos a outros acionistas da PT para que estes adquirissem ou reforçassem a sua posição na operadora. Entre eles estava o grupo Ongoing.

Telemóveis fora da sala José Maria Ricciardi falou ainda sobre a relação entre Ricardo Salgado e o então primeiro-ministro, José Sócrates, arguido na Operação Marquês por suspeitas de corrupção passiva para a prática de atos contrários aos deveres do cargo, fraude fiscal qualificada, branqueamento de capitais, falsificação, recebimento indevido de vantagem e tráfico de influências.

De acordo com o depoimento de Ricciardi, o antigo líder do BESI terá recebido instruções quanto ao contacto com o antigo líder do governo – o relacionamento com José Sócrates só deveria ser feito através de Ricardo Salgado. Os dois últimos reuniam-se com frequência e tomavam algumas medidas de cautela – uma delas era deixar sempre os telemóveis fora das salas onde se realizavam as reuniões.

Ricciardi disse ainda no DCIAP que chegou a correr o rumor de que teria sido o seu primo a indicar o nome de Manuel Pinho para o governo. Recorde-se que Pinho, envolvido agora no processo das rendas da EDP, foi ministro da Economia entre 2005 e 2009.

Guerra entre primos O Grupo Espírito Santo (GES) era composto por cerca de 400 empresas, geridas por três holdings: a Espírito Santo International (ESI), a Rioforte e a Espírito Santo Financial Group (ESFG). Esta última era a principal acionista do Banco Espírito Santo (BES) – o negócio financeiro primordial da família Espírito Santo. Com a crise financeira de 2008 e com negócios ruinosos a acumularem-se, as contas do grupo descambam. É nesta altura que o clã começa a dividir-se.

A cisão é visível nas reuniões entre os principais rostos do GES. Em novembro de 2013 são discutidos os pedidos de prestação de contas do grupo feitos por José Maria Ricciardi. Salgado deu um murro na mesa e exigiu um voto de confiança na sua gestão, pedido que Ricciardi ignorou. Começa então uma guerra aberta.

Com a queda do GES, a família fica de costas voltadas. Salgado, aquele que era visto antes como o “dono disto tudo”, fica sem o apoio de familiares e amigos, a braços com vários problemas na justiça. Mas Ricciardi também não é visto com bons olhos entre os Espírito Santo – para a maioria, é considerado um traidor, podendo contar apenas com o apoio do pai, António Ricciardi.