Jantámos no Café Arcada, na Praça do Giraldo, em Évora, e depois demos uma volta digestiva por ali. A noite estava quente e havia muita gente na rua.
A dada altura começámos a ouvir uns gritos estranhos. No passeio central da praça, um homem dos seus 60 anos, vestido modestamente mas não andrajosamente, com uma pasta azul na mão direita, gritava como um desalmado. Ou melhor, berrava. Dava um berro, parava uns momentos, voltava a berrar. Não se percebia se gritava para alguém ou simplesmente para o mundo.
Fomos até ao fim da praça, voltámos para trás, e o homem já estava noutro local mas continuava a gritar. Só que os berros eram agora aparentemente dirigidos a um grupo de 4 ou 5 pessoas que conversavam junto a uns arcos. A cena prolongou-se por alguns minutos: o homem berrava, o grupo mantinha-se impávido, à conversa.
Até que o grupinho se pôs em movimento, começou a atravessar a praça, e nisto um dos homens que o compunham – um fulano também dos seus 60 anos, bem vestido, de estatura normal – foi direito ao louco e invetivou-o: «Tu não voltas a fazer isso, ouviste? Aviso-te: nunca mais faças isso! Ai de ti se voltas a fazer!», e espetava o dedo ameaçador. O louco ficou sem aparente reação, e o homem afastou-se, direito ao grupo de que se tinha momentaneamente separado.
Mas por qualquer razão – talvez o outro lhe tenha dito alguma coisa de que não gostou – voltou atrás, encostou-se ao louco e simulou dar-lhe uma cabeçada. Ou deu-lhe mesmo. Do sítio onde estava não consegui perceber.
Aí, o louco reagiu. Primeiro deu um murro no fulano, a seguir deu-lhe um pontapé, o tipo desequilibrou-se, deu uns passos cambaleantes e por pouco não se estatelou no chão. Aí vi a coisa mal parada. O agredido, sentindo-se humilhado, fez menção de investir outra vez contra o louco, mas era agora evidente que, se o fizesse, levaria mais. E se caísse e batesse com a cabeça na calçada o caso seria grave.
Percebendo o mesmo que eu, várias pessoas dispararam a correr em direção aos dois homens, separaram-nos, enquanto um rapaz dos seus dez anos, nervosíssimo, gritava para o louco: «Tu nunca mais bates no meu avô! Nunca mais fazes mal ao meu avô, ouviste?». E tentava avançar para o homem, no que era impedido pelas pessoas que se tinham juntado à volta.
O episódio terminou com o ‘avô’ a ser levado dali pelo grupo que o acompanhava e o louco a ser abordado por dois polícias. Possivelmente já o conheciam e apenas o terão ameaçado de prisão caso continuasse a fazer cenas na rua.
Ver pessoas à luta sempre me impressionou muito. Em jovem houve um período em que me envolvi em cenas de pancadaria, mas por pouco tempo. Numa delas caí para trás, bati com a cabeça numa pedra e fui parar ao hospital. Noutra – num acampamento de escuteiros – ao tentar amparar-me com os braços para não cair, espetei um pau num pulso, cortei uma veia, e se não fosse um escuteiro indonésio que estava a acampar connosco – e que tinha formação em primeiros socorros – teria morrido. O sangue saía-me do buraco no pulso às golfadas. O indonésio fez-me um garrote no braço, que me salvou.
Depois tomei consciência do absurdo que era andar à pancada. E, talvez também dececionado por algumas derrotas, deixei-me disso.
Quando os meus filhos começaram a sair à noite com amigos, para peregrinações pelas discotecas, às vezes regressavam a casa de táxi porque já não havia transportes. E uma ou outra vez contaram-me que se tinham envolvido em discussões com os motoristas, chegando possivelmente (imagino eu) a vias de facto.
Expliquei-lhes uma coisa básica: cabe à pessoa mais preparada (e mais inteligente) evitar que uma discussão acabe à pancada. Quem vence a luta prova o quê? Que tinha mais razão do que a outra? E não se pode esperar que seja a pessoa mais boçal, ou mais burra, a ter a presença de espírito necessária para acabar com uma discussão.
Ora, digo o mesmo sobre a cena na Praça do Giraldo: cabia à pessoa sã de espírito ter evitado que as coisas chegassem àquele ponto.
O que pensaria aquele senhor bem-posto, já de certa idade, quando foi meter-se com o louco e mandá-lo calar? Que o louco tivesse juízo e lhe desse razão? E, pior ainda, o que lhe passou pela cabeça quando foi ameaçá-lo (ou atingi-lo mesmo) com uma cabeçada? Quereria mostrar aos que estavam com ele que era muito forte, que era ‘muito homem’ e não admitia que ninguém o molestasse, nem mesmo um louco?
Como pessoa normal, o homem devia ter-se posto no seu lugar. Devia-se ter afastado do louco, como eu fiz, e deixá-lo a berrar sozinho. No limite, se o louco o perseguisse, dirigia-se aos polícias e fazia queixa. Agora, andar à pancada com um demente na Praça do Giraldo é que não se admite. E ainda por cima acabar humilhado perante aqueles que queria aparentemente impressionar… Inclusive, perante o neto.