É britânico, da fria e chuvosa cidade de Leeds, mas está mais do que habituado às temperaturas exóticas de Portugal. Afinal, cobriu conflitos e crises nos quatro cantos do mundo, incluindo Afeganistão, Bósnia, Croácia ou Síria, e trabalhou como editor e correspondente na BBC e na Sky News antes de se lançar à escrita e à análise política. Esteve na Livraria Buchholz, em Lisboa, a convite da Desassossego, para falar sobre o seu mais recente livro, “Prisioneiros da Geografia”. Trocou as reportagens pelos livros, mas não perdeu o gosto por questionar e contrapor. A conversa com o i foi um interessante exercício de desconstrução de ideias e mentalidades.
É jornalista, escritor, investigador, analista político… Como se descreveria melhor?
Ainda sou um jornalista. Já não sou repórter, mas ainda me sinto jornalista. Hoje em dia escrevo sobretudo livros, mas também escrevo bastantes artigos jornalísticos de análise.
Principalmente no seu site – The What and the Why (O Quê e o Porquê). Pode explicar-nos melhor em que consiste este projeto?
Em Inglaterra debatemos muito as questões clássicas do jornalismo: quem, o quê, porquê, onde e quando. Nesse site destacamos duas delas. Principalmente porque, enquanto repórter, sempre senti que comunicar “o quê” era o mais importante e desafiante. Mas à medida que fui adquirindo um determinado nível de conhecimento e de antiguidade [risos], senti que era necessário focar-me no “porquê” – algo que é bastante mais difícil, porque é potencialmente subjetivo. Por isso entendi que era importante explicar o que está a acontecer e porque está a acontecer. Escrevo dois ou três artigos de análise por semana e há uma grande quantidade de gente, com diferentes visões e contextos, que também escreve. E para além disso já vou no meu quinto livro.
Parece-me mais apetecível do que escrever notícias diárias sobre atualidade…
Posso dizer que faço jornalismo de longa duração [risos].
No seu mais recente livro – “Prisioneiros da Geografia” – refere que em alguns círculos intelectuais a tese que vê a geografia como o fator mais importante da decisão política é vista com pessimismo, porque sugere que a natureza é mais poderosa que o homem.
Qual é o problema de aceitarmos isso? Gostaria de os ver no meio de um terramoto…
Esse pessimismo pode ajudar a explicar o porquê de o elemento geográfico estar a perder importância no debate público sobre política internacional?
Sim, porque a natureza ainda prova, nos dias que correm, que pode ser mais poderosa que o homem. Pensarmos que temos o total controlo dos nossos destinos revela uma enorme arrogância. Não estou com isto a dizer que está tudo deixado ao acaso. Quando queremos analisar ou comunicar uma situação ou decisão política, devemos olhar para a História, para o presente, para a cultura… para tudo. E nesse tudo estão incluídos os fatores geográficos. Ao não olharmos para eles, perdemos uma peça enorme no quebra-cabeças que perfaz o quadro geral. É impossível compreendermos esse quadro sem a peça geográfica.
Acha que os atuais decisores políticos, a opinião pública ou as novas tecnologias estão a ignorar em demasia essa peça?
Sim, muitíssimo! Mas os militares, não. Os membros dos exércitos sabem exatamente quão amplo é determinado rio e o que isso significa. Sabem a sua distância e o que é preciso carregar para o atravessar. Através dos seus cálculos podem chegar aos decisores políticos e dizer-lhes: “Se quiserem fazer ‘x’, eis as razões pelas quais o conseguirão ou não conseguirão fazer.” Esses fatores são geográficos. Fora dos exércitos, são poucas as pessoas que lhes prestam atenção suficiente. E principalmente no nosso “negócio”, o jornalismo, as pessoas não estão a dar a devida atenção.
No livro diz também que, em tempos de paz, todas as nações do mundo estão a preparar-se para o dia em que a guerra regressará. Como se explica esta realidade às gerações que cresceram em partes do mundo onde a guerra é algo que apenas acontece ao longe ou que vem em livros de História?
Gosta de futebol? O que anda o seu clube a fazer neste momento?
Está a fazer jogos de preparação, a treinar para a nova temporada…
Se pensarmos na temporada futebolística como a guerra, os jogos amigáveis são a preparação para a guerra. Acha que as nações, em tempos de paz, não estão também a treinar para a guerra? Seriam loucas se não o fizessem.
Mas compreende a dificuldade de explicar essa realidade às gerações mais novas que integram, por exemplo, o chamado espaço europeu de pós-conflito?
E a Bósnia? E o Kosovo? Não fazem parte da Europa? Devemos olhar para além das diversas gerações, mesmo para além das dos nossos pais. É verdade que tivemos 70 anos fantásticos de paz e de relativa prosperidade na Europa ocidental. Mas e se compararmos esses 70 anos com os anteriores dois mil? Houve largos períodos pacíficos, claro, mas foram sempre interrompidos pela guerra. Baseado em que lógica é que um europeu ocidental de 25 anos pode assumir que, por não ter havido problemas na sua região nas últimas décadas, não poderá haver guerra no futuro? No que toca às democracias – e assumindo que as mesmas se mantêm e que as pessoas continuarão a dar valor à sua preciosidade -, é verdade, o risco de conflito é menor. Mas se olharmos para as desigualdades que existem na Europa e no resto do mundo, é inevitável questionarmo-nos: “Afinal, o que raio é uma democracia?” E aí é importante refletirmos sobre o que existia anteriormente.
Acredita então que estamos longe de ver a experiência pacífica europeia ocidental ser recriada noutras partes do mundo?
Na Síria? Na Coreia do Norte? No Congo? Na Líbia? Há duas formas de vermos o problema. Conhece o filme “2001 – Uma Odisseia no Espaço” [1968], do [Stanley] Kubrick? Na parte relativa ao início da humanidade, dois grupos de primeiros homens lançam pedras uns aos outros, em disputa por uma poça de água. Olhando para Hiroxima [Japão], Srebrenica [Bósnia], Raqqa [Síria]… Estaremos assim tão longe dos primeiros homens, retratados no filme? Esta é uma visão pessimista. Numa visão otimista podemos dizer, no entanto, que prosperidade leva a estabilidade e aquela resulta em redução da violência. No mundo ocidental atingimos isso, nomeadamente com a redução da taxa de mortalidade infantil e dos níveis de pobreza, e com o aumento dos níveis de escolaridade, através de políticas, tecnologias e da criação de espaços adequados para tal. Mas embora esta realidade nos ofereça razões para sermos positivos, não devemos ser complacentes. Se esta maravilhosa cidade de Lisboa – que eu adoro! – se fragmentasse como a Beirute [Líbano] dos anos 70, não duvido que se tomariam as mesmas decisões que levaram à violência.
Para o título do livro escolheu o termo “prisioneiros”, uma conotação negativa. Mas, em muitas regiões, a geografia ofereceu oportunidades diversas aos Estados, em vez de prisões…
[Risos] O título é essencialmente provocatório! O argumento principal do livro é o de que geografia influencia, em grande medida, a vivência e a tomada de decisão política. A Rússia é um exemplo claro de um país que é prisioneiro da sua geografia, pela sua localização, pelas suas planícies imensas e pelo facto de os seus portos navais congelarem durante grande parte do ano. A sua liberdade e as suas escolhas estão claramente limitadas pela sua localização. Se estudarmos a fundo os dilemas geográficos da Rússia, torna-se mais fácil adivinharmos o que se vai passar a seguir. Quando a Ucrânia passou para a esfera de influência do Ocidente, eu tinha 99% de certezas de que o próximo passo dos russos seria a anexação da Crimeia. Um bom conhecimento da geografia é uma boa ferramenta para analisar decisões políticas.
Mas, por exemplo, o caso de Singapura: a sua localização [à entrada do estreito de Malaca] ofereceu-lhe uma oportunidade única de desenvolvimento, dificilmente caracterizada como uma prisão…
Sim, é verdade, mas há que olhar também para a forma como surgem essas oportunidades. Por exemplo, o facto de no Reino Unido termos acesso imediato ao mar proporcionou-nos uma ótima oportunidade de expansão marítima. Mas também não tivemos propriamente escolha, uma vez que estávamos limitados territorialmente dentro de uma ilha. Foi a geografia que determinou que teríamos de ser uma potência marítima. Fomos prisioneiros de uma oportunidade.
No livro refere que a sua experiência nas guerras balcânicas [anos 90] lhe abriu os olhos para esta temática. Em que medida?
A região da Bósnia estava a ser palco de uma onda de violência aparentemente irracional. À medida que me questionava sobre as suas razões, percebi que a violência era tudo menos irracional. Em causa estava o controlo de um determinado pedaço de terra. Mas porquê aquele pedaço específico? Porque dava acesso a outro pedaço de terra. E as forças em disputa queriam controlar os dois, porque juntos formavam um corredor que daria acesso a “x”. Foi este tipo de encadeamento de ideias que me fez concluir que aquela violência assentava numa lógica e que essa lógica era geográfica.
Também esteve na Síria. Como vê o futuro do grupo terrorista Estado Islâmico sem a componente territorial e geográfica, que está aparentemente a perder?
O ISIS transcende a geografia, porque é acima de tudo uma ideia.
Mas a componente territorial é o que o diferencia de outros grupos fundamentalistas islâmicos…
Sim, o grande feito do Estado Islâmico foi a conquista de território, ao contrário da Al-Qaeda. Conseguiram criar um aparente califado e algumas das suas profecias cumpriram-se, como o hastear das bandeiras negras em Dabiq [norte da Síria]. Isso deu-lhes bastante poder. Mas com a queda de Mossul [Iraque] e a previsível queda de Raqqa, desmorona-se o seu território instável e apenas pode sobreviver a ideia. Os combatentes europeus vão voltar para a Europa e iremos ver mais explosões nos próximos anos. Os combatentes da Ásia central também vão voltar para os seus países e fazer estremecer países como o Usbequistão. Quanto aos combatentes árabes, vão permanecer clandestinos nas cidades ou vão para o vale do rio Eufrates formar um exército. O ISIS está a perder batalhas atrás de batalhas, mas ainda não perdeu a guerra. Só a irá perder se a ideia for derrotada.
Mas concorda que aquilo que nascerá da derrota geográfica será algo distinto do atual Estado Islâmico?
Na realidade, pouco importa se será distinto ou se terá este ou aquele nome. A ideia de fim do mundo, de niilismo, de conquista do mundo por obrigação divina, de morte em combate, sobreviverá enquanto existirem formas bem-sucedidas de persuasão de jovens ingénuos e oprimidos pelo mundo ocidental. É geracional. Isto vai continuar durante anos e anos e anos. Odeio a expressão “novo normal”, mas este é o ponto em que estamos e onde iremos ficar nos próximos anos. E vai piorar.