Trump e Kim. Guerra das hipérboles

Trump provocou a Coreia do Norte com o mesmo tipo de linguagem que o regime usa. Contrariou os esforços do seu secretário de Estado e pôs o mundo em alarme

Numa só tirada improvisada, agressiva, inédita e sobretudo inesperada, Donald Trump lançou na terça-feira a mais nítida ameaça de ataque nuclear contra o regime norte-coreano desde que o país foi criado, há mais de 70 anos. “O melhor para a Coreia do Norte é não ameaçar mais os Estados Unidos”, atirou desde o seu resort na Nova Jérsia, onde por estes dias passa um período alongado de férias, entre jogos de golfe e reuniões. “Em resposta vão receber um fogo e uma fúria que o mundo nunca antes viu”, prosseguiu o presidente americano, sentado, de braços cruzados e aparentemente impaciente com a entrada de jornalistas num encontro sobre a crise dos opioides nos Estados Unidos. “Como disse”, continuou, “vão receber fogo e fúria e, francamente, poder como este mundo ainda nunca viu. Obrigado”.

A frase ressoou imediatamente em nos meios de comunicação mundiais como um alarmante passo nas tensões com a Coreia do Norte, que no último mês testou dois mísseis intercontinentais capazes de atingir grande parte do território americano. Trump, aliás, lançou-se na tirada da tarde de terça-feira – já noite em Portugal – quando um jornalista lhe perguntou sobre uma notícia do “Washington Post”, anunciando que o reino dos Kim já pode ter a tecnologia nuclear necessária para introduzir ogivas nucleares nos seus mísseis de curto, médio e longo alcance. O dia de ontem, de resto, foi passado a tentar desconstruir as intenções do presidente americano. 

Se a intenção de Trump era a de falar aos norte-coreanos com o seu próprio discurso e assim demonstrar que a ameaça de um ataque americano é real, a estratégia não parece ter funcionado. Duas horas depois das declarações de Trump, o próprio regime norte-coreano anunciou que está a preparar uma estratégia para bombardear a ilha de Guam, o território norte-americano no Pacífico mais próximo da península e onde se encontra uma das mais importantes bases aéreas de Washington na região – uma base que, aliás, vai aumentar o número de soldados de seis para 12 mil nos próximos dez anos, preparando-se para uma China mais expansionista. E estratégia nunca parece ter existido. O “New York Times” adianta que os funcionários da Casa Branca ficaram tão surpreendidos com as declarações de Trump como o resto do mundo. O presidente, sabe-se agora, improvisou uma ameaça nuclear a Pyongyang. E ainda para mais no aniversário da bomba nuclear de Nagasaki, um ataque que Harry Truman ameaçou em agosto de 1945 quase da mesma forma:“Se não aceitarem as nossas condições”, disse então ao império japonês, “podem esperar uma chuva de ruína desde os ares, de um tipo que nunca foi visto nesta Terra”.

Impacto Os diplomatas americanos tentavam ontem simultaneamente suavizar as declarações do seu presidente e assegurar que, como ele disse, os EUA estão dispostos a um ataque militar contra o regime coreano se assim for necessário. Rex Tillerson, o secretário de Estado que passou os últimos dias a tentar precisamente o contrário de Trump – isto é, a procurar canais de diálogo com a Coreia do Norte –, disse que “os americanos devem dormir descansados esta noite”. “Nada de que eu saiba ou tenha visto indica que a situação piorou dramaticamente nas últimas 24 horas” afirmou Tillerson, que parece ter a sua própria linha de ação para a crise na Coreia. Do seu lado, o secretário da Defesa Jim Mattis, indicando que o governo americano ainda não decidiu o que fazer em relação à escalada com Kim Jong-un, afirmou que o regime “arrisca o seu fim e o da sua população” no caminho atual. 

O consenso fora do governo americano é o de que o Donald Trump fez uma ameaça demasiado beligerante e desnecessária. Ou, como afirmava ontem o especialista Robert E. Kelly,“desnecessária, assustadora e irresponsável”, dizendo que as declarações do presidente americano parecem saídas do Antigo Testamento, que Trump atropelou os esforços diplomáticos do seu secretário de Estado e que piorou uma situação já tensa. “Os Estados Unidos não têm a reputação de um Estado pária com historial de fazer coisas loucas e narcotráfico como a Coreia do Norte”, explicou ao “Washington Post”. “Quando os americanos começam a falar desta maneira, estão a enviar um sinal a toda a gente:o centro não está a aguentar”. “Esperamos mais das democracias, esperamos melhor dos países liberais”.