Favorável ao Sócrates é [o Diário de Notícias] todos os dias», diz o próprio dono do jornal, Joaquim Oliveira, em conversa telefónica com Armando Vara.
As escutas do processo Face Oculta revelam um mundo sórdido de relações entre políticos, proprietários de jornais, banqueiros e até jornalistas.
Nessa conversa entre Oliveira e Armando Vara, em 2 de setembro de 2009, em vésperas de eleições legislativas, Vara mostra-se incomodado com um título do DN desse dia: «Bela manchete para a causa…F…-se, pá!». Mas Oliveira deita água na fervura: «Pode ser bom para o Sócrates, para ele dizer que aquilo é um problema crónico e que agora o PS está a fazer tudo para aliviar essa m…».
Mas a irritação do socialista não abranda: «Isso é um jornal sem rumo, nem aquece nem arrefece, mas serve para indispor.» Oliveira, porém, contraria-o. Garante que o DN é leal a Sócrates e ao seu Governo. «É claramente para o governativo, para o Sócrates, se quiser». Mas Vara não desarma. Referindo-se de novo à manchete, pergunta: «[É favorável a Sócrates] o quê, o título?». Ao que Oliveira responde: «Não, o jornal!».
A manchete era sobre um relatório da OCDE que colocava Portugal a encabeçar a lista dos países que menos investiam nas crianças.
´Despedir o diretor? É muito caro!’
A discussão alonga-se, com Joaquim Oliveira a atirar a responsabilidade para o então diretor do DN, João Marcelino: «O que é que eu vou fazer, bater-lhe, despedi-lo?». Vara não tem dúvidas sobre o destino do jornalista: «Sim, vai acabar por fazê-lo, é uma questão de tempo!». Oliveira pensa na indemnização que terá de pagar a Marcelino (que, segundo o contrato, é da ordem dos milhões), e comenta: «Mas vai ficar caro desta vez se o mandar embora».
Para pacificarem as relações, o patrão da Controlinveste sugere um almoço mais recatado, na semana seguinte, na sede do DN, na Avenida da Liberdade. Mas Vara prefere agir pelo seguro: «É melhor não, que se isso traz alguma notícia favorável ao Sócrates dizem logo que fui eu». Oliveira responde com a verdade: «Favorável ao Sócrates é todos os dias».
A Controlinveste (proprietária da SportTV, Jornal de Notícias, Diário de Notícias, TSF e O Jogo) estava na prática nas mãos de Armando Vara (e, portanto, nas de Sócrates) por via do empréstimo de cerca de 300 milhões de euros contraídos por Oliveira junto do BCP para adquirir, em 2006, aquele grupo de comunicação. É que Vara era agora, em 2009, vice-presidente do BCP. E neste mesmo ano seria concedido ao dito empréstimo um período de carência por mais três anos.
A tentativa de compra da TVI
Três meses antes, a 21 de Junho, Armando Vara, numa conversa com Rui Pedro Soares (administrador da PT e da Tagus Park, e o homem escolhido para ultimar o negócio da compra de 33% da TVI ao grupo espanhol Prisa), pergunta-lhe se aquela parcela será suficiente para controlar a estação: «E o poder, o poder?», questiona. Ao que Rui Pedro Soares responde: «Temos aquele que nos interessa».
Nessa época, o projeto de aquisição da TVI e outros órgãos de comunicação social foi batizado com um nome de código ‘Projeto Aljubarrota’ e nele estava previsto que a compra da TVI seria feita via Tagus Park (o parque tecnológico de Oeiras do qual a PT era sócia) em parceria com o Grupo Lena e com a âncora financeira do então Banco Espírito Santo Investimento, liderado por José Maria Ricciardi. Assim, a PT e José Sócrates não teriam os seus nomes envolvidos.
Numa investigação recente, o SOL recuperou a minuta original do contrato entre as partes referidas, elaborada no escritório de advogados de José Miguel Júdice (a PLMJ), que tinha como cliente a Tagus Park.
Recorde-se que, no seu primeiro mandato, Sócrates tornara-se no alvo principal do caso Freeport, processo onde era suspeito de ter recebido luvas para dar luz verde ao licenciamento do centro comercial. O semanário SOL [dirigido por José António Saraiva] e a TVI [de José Eduardo Moniz], os dois órgãos de comunicação social que lideraram a investigação, passaram a ser alvos a abater.
Mas enquanto para o semanário a ordem era de liquidação imediata, a estratégia para a estação de televisão passava apenas por retirar de cena José Eduardo Moniz e Manuela Moura Guedes.
A Caixa queria entrar no negócio
Para que não ficasse a mancha de haver um saneamento político, Moniz já fora convidado para consultor estratégico da PRISA e Moura Guedes ficaria na prateleira. E a suportar o negócio estariam os parceiros do costume.
O BESI financiaria a operação, mas – curiosamente – o banco público, a CGD, também não queria ficar de fora. Rui Pedro Soares, o homem destacado pela PT para estar na proa da operação, conta a Armando Vara que teve de se esforçar para impor o bom senso à Caixa: «Estive agora a convencer o Bandeira [Francisco Bandeira, administrador da CGD e da PT] que a Caixa não podia financiar esta operação nem com um euro, nem ter mandado de compra».
Vara quer saber quem entra então com o capital, e o outro explica: «O BES Investimento. O Ricciardi vai fazer uma conferência de imprensa com o Zeinal e o Polanco [Manuel Polanco, patrão da Prisa]».
Entretanto, para o caso de algum contratempo, Armando Vara coloca também o ‘seu’ Millennium BCP ao dispor: «Se precisarem que nós financiemos, digam qualquer coisa. Depois, ser o BES a liderar o projeto, tudo bem». Mas Rui Pedro Soares dispensa a generosidade do interlocutor: «Não é preciso! A ideia é serem só mesmo eles a financiar».
A pretensão de adquirir a TVI abortaria, porém. Uma fuga de informação, que os socialistas atribuem a Moniz, acaba por chegar ao então Presidente da República, Aníbal Cavaco Silva. A questão acaba por ser discutida no Parlamento e os planos vão sofrer um forte revés (que, no entanto, não travariam a saída de Moniz e Moura Guedes da estação privada).
O pivô Nuno Vasconcellos
A estratégia para transformar os media em marionetes do Governo não ficava por aqui. Rui Pedro Soares coloca Armando Vara a par da tentativa da Ongoing, de Nuno Vasconcellos, de açambarcar títulos na área da imprensa, também alavancado pelo BES.
Numa época em que a crise já começava a assombrar os grupos de comunicação social, os bancos – que, entre si, eles apelidavam como «os nossos» – abriam a torneira para satisfazer a tentativa da operação de monopólio de Sócrates nos media.
Vasconcellos detém 25% da Impresa e pretende adquirir outro tanto, para assumir o controlo do grupo. Filho de Luiz Vasconcellos (amigo de longa data de Francisco Balsemão), que acabara de falecer, Nuno joga ‘à traição’. Sugere a Balsemão, seu padrinho de casamento, um aumento de capital da Impresa para limpar dívidas e fazer investimentos. Sabendo que aquele não tinha capital para a subscrição, propõe-se entrar com 70 milhões, ficando automaticamente em posição dominante.
Noutra escuta de uma conversa entre Joaquim Oliveira e Armando Vara, dois meses mais tarde, este revelaria ter informação privilegiada sobre aquela intervenção: «O Balsemão está à beira do abismo, só lhe falta dar um passo em frente. Está teso que nem um carapau e nunca tinha sido alvo de um ataque assim».
Em simultâneo, Vasconcellos preparava-se para adquirir a Cofina (proprietária do Correio da Manhã, Sábado, Jornal de Negócios, etc.).
A ambição do jovem empresário arrancou a Vara o seguinte comentário: «Esse tem mais olhos do que barriga». Mas Rui Pedro Soares explica a manigância: «É que não convém sermos nós a comprar… mas o Nuno está querer comprar».
No entanto, Vara mostra-se mais atraído pelo Público [dirigido por José Manuel Fernandes]. O interlocutor, contudo, discorda: «O Público nesta fase não vale um caracol». Ao que Vara contrapõe: «É um prejuízo louco mas faz opinião, faz as manchetes, faz os telejornais…».
Mas Rui Pedro Soares tem na manga medidas mais radicais e sugere: «Se conseguires que deixe de fazer…».
O Grupo Lena em ação
Enquanto isto, novos jornais, como o diário i, eram criados à sombra dos mesmos grupos para fazerem a defesa das políticas socráticas antes das legislativas. E tentava-se ressuscitar a revista Grande Reportagem.
O título da revista devia ser adquirido por Joaquim Oliveira, e a sua diretora seria a ex-jornalista e advogada Inês Serra Lopes. Em conversa com Vara, em junho de 2009, Serra Lopes faz algumas queixas. Diz já ter adjudicado, com a cobertura financeira de Carlos Santos Silva, alguns aspetos da produção da revista, como a contratação do projeto gráfico – sendo desautorizada por Francisco Santos (responsável do setor de comunicação social do grupo Lena), que lhe respondeu que conseguiria tudo por melhor preço. «O Francisco ligou-me agora e disse: ‘Gráficas, distribuição, esqueça, eu trato de tudo, arranjo preços mais baratos’». Ora isto deixou compreensivelmente a jornalista um pouco «aflita», pois já tinha empenhado a sua palavra.
Vara sugere-lhe que Francisco Santos fale com as pessoas com as quais ela se comprometeu, «e que tente encontrar uma solução para isso». Serra Lopes adianta que o homem do grupo Lena procura fazer «sinergias», tais como recorrer à responsável da fotografia do jornal i para executar também a parte de imagem da revista, mas ela tem dúvidas: «Editar uma revista daquelas é um trabalho que ocupa três semanas cheias, porque a fotografia é importantíssima».
Vara pergunta diretamente o que a interlocutora pretende dele, e ela responde que quer «colinho»: «Saber se o contrato [para aquisição do nome da revista] já foi assinado ou não, se o título já é nosso ou não». Vara informa-a de que já tivera uma reunião com Carlos Santos Silva e com Joaquim Oliveira: «Ficou tudo tratado, os negócios ficaram tratados, é só formalizar».
Inês mostra-se ansiosa, porque já teria conseguido «16 páginas de publicidade», e Vara aconselha-lhe calma: «É melhor aguardar um tempinho, ter calma, para deixar estruturar melhor as coisas». Serra Lopes conclui que terá então de se «adiar o lançamento» da revista. O projeto foi por água abaixo, porque a Grande Reportagem não voltou a ser publicada.
Hipótese de ‘crime’ foi de novo ressuscitada
Estas escutas foram intercetadas no âmbito do processo Face Oculta. Na altura, o procurador coordenador da investigação, João Marques Vidal, bem como o juiz de instrução António Gomes, do Tribunal de Aveiro, consideraram flagrantes os indícios de que estava em curso um crime de atentado contra o Estado de direito, através da manipulação dos meios de comunicação social. Os magistrados defenderam ainda um inquérito ao mais alto nível, que por lei teria de ser feito pelo procurador-geral da República, Pinto Monteiro, e pelo presidente do Supremo Tribunal de Justiça, Noronha do Nascimento, por estar em curso um ‘plano’, com o primeiro-ministro à cabeça, para controlar os media.
O desfecho deste capítulo do processo Face Oculta é conhecido. Pinto Monteiro entendeu que as conversas em causa não tinham a relevância criminal que os magistrados de Aveiro defendiam. E Noronha do Nascimento considerou que as escutas não poderiam ser usadas, pois eram provas ‘nulas’ (por terem sido recolhidas noutro inquérito) – tendo mandado destruir todas as gravações com as escutas telefónicas em que Sócrates era interveniente.
Sete anos depois, uma nova equipa de investigação tenta lançar uma nova luz sobre este famoso ‘plano’.
Agora os investigadores da Operação Marquês, para demonstrar o antigo poder de influência que José Sócrates detinha através de homens de sua confiança em bancos como o BES, a CGD ou o BCP, ou em empresas como a Lena ou a PT, juntou ao processo novas escutas de dois inquéritos diferentes: Face Oculta e Monte Branco, onde se assiste ao desfile dos mesmos protagonistas.
Aliás, a tese dos magistrados de Aveiro é agora reforçada com a descoberta, numa busca no passado mês de junho, de novos documentos ao banco Haitong (antigo BESI) e à PT, que revelam que o plano já estava em curso em 2008.