Continuam a subir de tom as reivindicações dos enfermeiros e também dos médicos mas o governo não dá sinais de cedência. Ontem o Ministério da Saúde tornou públicas duas notas sobre a legalidade dos protestos em marcha entre os enfermeiros, que abrem mais um capítulo nas divergências no setor.
Por um lado, o governo considera que a greve de cinco dias convocada para a próxima semana por dois sindicatos dos enfermeiros é irregular, uma vez que o pré-aviso não foi feito com a devida antecedência.
Já ao final do dia foi publicada uma circular da Administração Central do Sistema de Saúde enviada a todas as entidades do SNS que alega, com base um parecer jurídico, que não é “legalmente possível” os enfermeiros suspenderem a sua inscrição como especialistas na Ordem – a forma de protesto encontrada nas últimas semanas pelos profissionais para não serem obrigados a desempenhar as tarefas especializadas para as quais exigem remuneração.
De acordo com esta circular, o estatuto da Ordem dos Enfermeiros só prevê a possibilidade de os profissionais suspenderem a sua inscrição como membros, não podendo pedir para deixar de ser especialistas.
Para o Ministério da Saúde, os enfermeiros com título de especialista que se recusem a prestar atos de enfermagem “ainda que com fundamento no facto de terem, voluntária e concertadamente, suspendido a respetiva inscrição, designadamente como especialistas, na Ordem dos Enfermeiros incorrem numa violação dos deveres contratuais e legais a que estão obrigados, especialmente os deveres de zelo, obediência e lealdade”.
Recorde-se que o aviso de processos disciplinares já tinha sido feito depois de um parecer da PGR ter considerado que o movimento de enfermeiros especialistas que tem mobilizado estes protestos, com o apoio da Ordem, não tinha competência legal para decretar a greve de zelo que se verificou durante o verão.
“Acho piada”, ironiza bastonária
A bastonária dos Enfermeiros recusou ao i qualquer ilegalidade, salientando que já noutras ocasiões foram suspensos títulos de especialistas por parte da Ordem. “Há uma hostilidade face aos enfermeiros que não se percebe”, diz Ana Rita Cavaco, que acusa a tutela de se estar a refugiar em pareceres jurídicos em vez de fazer propostas concretas para aplicar a partir de 2018 e que garantam que os enfermeiros, tal como os médicos, passam a ter uma carreira de especialistas.
“O governo em vez de resolver os assuntos que lhe compete vai pedir pareceres. A minha reação é dizer acho piada. É extraordinário que quando os hospitais cometem diariamente ilegalidades porque não cumprem as dotações mínimas de enfermeiros nos serviços ou obrigam os profissionais a fazer horas extras que não são pagas, o governo venha pedir pareceres sobre matérias que não são da sua competência”, disse Cavaco, garantindo que, se for necessário, a Ordem irá esgrimir argumentos com o Ministério na Justiça. No documento da ACSS, lê-se que independentemente da Ordem poder aceitar os pedidos de suspensão de títulos, os hospitais poderão aplicar faltas injustificadas ou sanções disciplinares. Apesar do aviso já ter sido feito aquando do protesto inicial, o i sabe que não têm sido acionadas sanções.
Blocos de parto a 15%
Durante a tarde de ontem, Bruno Reis, porta-voz do movimento dos enfermeiros especialistas em enfermagem de saúde materna e obstétrica que desencadeou os protestos, disse ao i que a mobilização está a ter impacto em todos o país, com os serviços de obstetrícia com apenas 10% a 15% dos recursos de enfermagem especializada habituais, adiantando ainda que há casos de blocos de parto onde existe apenas um enfermeiro especializado em funções.
O resultado são preparações para parto canceladas, assim como visitas às maternidades. As induções de parto estão também com um atraso de alguns dias em algumas unidades.
Questionado sobre o facto de poder haver situações de risco para as grávidas e bebés decorrentes do protesto, Bruno Reis garante que os profissionais alertarão sempre os médicos perante algum sinal de perigo. “Não temos conhecimento de qualquer incidente relacionado com o protesto”, diz o porta-voz, rejeitando que a greve de zelo tenha estado por detrás do caso da grávida de risco que no final de agosto perdeu o bebé em Santa Maria, situação que está a ser objeto de um inquérito. O i sabe, ainda assim, que o protesto tem levado a transferências de grávidas entre unidades.
O i tentou perceber junto da Ordem dos Enfermeiros quantos pedidos de suspensão de título de especialista foram recebidos e validados, balanço que foi remetido para o final da semana. Fonte oficial adiantou apenas que, além de enfermeiros especialistas em obstetrícia, já houve pedidos por parte de enfermeiros especialistas em reabilitação, enfermagem médico-cirúrgica e saúde infantil.
Médicos pedem reforços
Perante o protesto inédito dos enfermeiros, a Ordem dos Médicos já solicitou aos clínicos para que, quando virem que as equipas não têm os elementos necessários, preencham uma minuta para dar conhecimento às chefias.
O bastonário Miguel Guimarães adiantou ao i que endereçou uma carta a todos os hospitais a solicitar o reforço imediato das equipas médicas para dar resposta à falta de enfermeiros. A Ordem está a equacionar avançar com uma redefinição das normas a cumprir nos blocos de parto em situações de emergência, para quando não for possível garantir a presença mínima de um enfermeiro com especialidade de enfermagem obstétrica. Sem se pronunciar sobre a legitimidade do protesto dos enfermeiros, Guimarães considera essencial que o governo tome medidas para “tranquilizar as grávidas e garantir a segurança”.
Greve em causa
Também indiferentes ao parecer do governo, os sindicatos insistem que a greve dos enfermeiros vai começar na segunda-feira às 00h e acusam o secretário de Estado do Emprego de má-fé, admitindo apresentar queixa ao Ministério Público. Isto porque foi um ofício da Secretaria de Estado do Emprego, tornado público pela ACSS, que suscitou a questão da irregularidade – o aviso prévio da greve terá sido apresentado a 28 de agosto, não cumprindo assim os dez dias úteis de antecedência obrigatórios. Segundo o i apurou, o entendimento do governo é que teria de ser feito um novo pré-aviso e desmobilizada a greve da próxima semana.
Num esclarecimento nas redes sociais, o Sindicato dos Enfermeiros fez saber que já houve inclusive uma reunião para definição dos serviços mínimos e garante que o pré-aviso foi feito a 25 de agosto e não a 28. A criação de uma carreira de especialistas e a aplicação do regime de 35 horas da função pública a todos os enfermeiros são algumas das reivindicações, que hoje serão discutidas numa nova reunião com o ministério.
A cumprir-se a greve dos enfermeiros, os ânimos prometem não serenar para os lados da Avenida João Crisóstomo. Ontem os sindicatos médicos reiteraram a ameaça de greve para outubro. Os clínicos também estão num impasse negocial com a tutela em temas como o número de utentes por médico de família e o trabalho nas urgências.