A separação obrigatória de estudantes por géneros nas escolas públicas portuguesas não aconteceu assim há tanto tempo e ainda está presente na memória dos que eram adolescentes em plena revolução dos cravos. Os livros eram os mesmos para rapazes e raparigas, a matéria a aprender não era diferente nem a forma como era ensinada. A preocupação do sistema de ensino português de há pouco mais de 40 anos centrava-se só na impossibilidade de meninos e meninas conviverem sob o mesmo teto.
“Só nos misturaram a partir do nosso décimo ano. Como crianças nem sequer questionávamos essa realidade, as escolas eram divididas no primeiro ciclo, havia para rapazes uma escola e outra para raparigas. A partir do momento que ocorreu a adolescência sim, partilhávamos o mesmo liceu mas estávamos todos separados. Até espreitávamos de um recreio para o outro”, conta o hoje professor Miguel Pinto, de 58 anos, natural de Vila Real, onde estudou e hoje leciona.
No liceu de Vila Real havia recreios separados por um portão forrado com uma rede e era por aí que os estudantes espreitavam. As memórias não chegam ao ponto de se lembrar se havia trocas de segredos enquanto espreitavam o momento de descanso e brincadeira dos intervalos das aulas, mas Miguel Pinto recorda que no caminho para as salas de aula dava-se a única partilha de espaço entre os alunos dos dois géneros. “Era quando podíamos olhar uns para os outros”, explica.
Um pouco antes da revolução, implementaram-se as turmas mistas, Hoje. como professor, a segregação por géneros “não faz qualquer sentido, não tem pés nem cabeça”, defende. Para o professor, o maior problema é que o próprio Estado manteve até “há muito pouco tempo” a impossibilidade de as raparigas frequentarem instituições como o Colégio Militar, sendo que as primeiras 33 alunas a entrar na instituição de ensino só começaram a frequentar o Colégio em 2013.
O professor de secundário considera que há diferenças biológicas nítidas entre géneros que condicionam, por exemplo, a diferença de maturidade entre adolescentes dos diferentes géneros. Porém refere que “a diferenciação em termos de tarefas de natureza intelectual não faz qualquer sentido”.
Rosa Rodrigues, professora de História e Geografia a alunos de segundo ciclo, concorda. Aos 58, a professora recorda algumas das peripécias da sua geração em Lamego, cidade onde estudou, antes e após o 25 de Abril. “Em primeiro lugar, nós raparigas nem saias podíamos vestir. Os recreios eram separados “o que não impedia que se namorasse, mas era tudo no segredo dos deuses”, recorda. “Havia mesmo vigilância por parte dos funcionários e ficavam mesmo chateados se nos viam a aproximar ali da linha vermelha da separação”.
E havia protestos? “Nós não questionávamos nada porque não fomos educados para pensar. Era tudo normalíssimo”, resume a professora.
Nas cidades chegavam mesmo a existir liceus específicos para cada género, apenas nos que aceitavam os dois é que se fazia esse tipo de segregação, conta Rosa Rodrigues, lembrando a inversão trazida pelo 25 de abril. “De um dia para o outro, os rapazes do nosso liceu começaram entrar pela entrada para a escola que era só para raparigas e as raparigas pela entrada que estava destinada aos rapazes. Foi fantástico, mas como a entrada das raparigas tinham muitas escadinhas, os rapazes iam por lá porque aproveitavam e espreitavam para as nossas pernas”, relembra a rir.
A mistura depois da revolução
Para quem era mais tímido, de repente esta situação de mistura trouxe alguns constrangimentos. “Era tudo ao monte e fé em Deus”.
A partir do décimo ano de escolaridade, os rapazes e as raparigas podiam misturar-se. Eduarda, hoje com 69 anos e professora de línguas, explica que esta separação vinha com o intuito de criar uma juventude respeitadora e responsável “não havia como vemos hoje nas escolas os rapazes a abusarem com a força da adolescência e a apalparem o corpo das raparigas, naquela altura também apareceram meninas grávidas, mas na minha escola foram três em todos aqueles anos de percurso escolar. Hoje é trágico”, diz a docente que, de algum modo, lamenta que a política tenha mudado. “Há sempre comportamentos desviantes, mas claro que no meio daquela educação cristã e da Mocidade Portuguesa tínhamos uma educação para o recato e os bons modos”. Viviam tudo na na mesma, mas “ficava mal” falarem uns com os outros. “Éramos vigiados por funcionários”, recorda.
Eduarda também deu aulas a turmas de diferentes géneros. Mas, na altura, “fazia sentido”, acredita. Quanto à diferenciação de livros, não entende como é que ainda é discutido isso, mas ao ouvir falar da temática sente que há mudanças mais importantes. “Os livros eram os mesmos mas não nos podíamos falar nos corredores”, lembra. “O governo tinha muito cuidado com a nossa formação, então connosco raparigas éramos flores brancas e intocáveis. Hoje está tudo diferente, para pior. As raparigas nas escolas são lançadas aos leões”, descreve.
A lei que permitiu juntar rapazes e raparigas nas mesmas escolas e turmas entrou em vigor no ano letivo 73/74, invocando-se uma “evolução social” com o intuito de “situar homens e mulheres lado a lado em equivalência de direitos e deveres”. “Convém, pois, que as crianças se habituem, desde os primeiros tempos da escolaridade, a uma situação que não seja de separação de sexos, mas em que rapazes e raparigas cresçam numa sã convivência”, proclamou na altura o diploma.