O país discute há um ano o problema das viagens pagas a titulares de cargos públicos, mas continuam a surgir novos factos. Depois da polémica dos convites da Galp para o Euro 2016, surgiram nas últimas semanas vários exemplos de empresas multinacionais que convidaram titulares de cargos políticos e altos funcionários do Estado. Esta semana, o jornal i revelou os convites da Microsoft a largas dezenas de autarcas, sendo que dos municípios contactados apenas sete confirmaram ter ido a Seattle visitar a sede da empresa. Pagaram o voo, a companhia ofereceu o resto. Susana Coroado e Luís de Sousa, investigadores que se têm debruçado sobre a temática do lóbi, não têm dúvidas: as polémicas passam, o vazio legal mantém-se.
Depois do caso das viagens da Galp, que envolveu três ex-secretários de Estado, o Governo avançou com um Código de Conduta, que impôs um limite de 150 euros ao valor das ofertas que se podem receber. A partir deste valor existe «um condicionamento da imparcialidade e da integridade do exercício de funções».
Sempre que se verifiquem essas ofertas, terão de ser entregues a instituições de caráter social. O mesmo se passa com convites em que as despesas a suportar pelos anfitriões ou promotores ultrapassem os 150 euros, sendo exceção eventos que correspondam a usos sociais e políticos consolidados ou que partam de Estados Estrangeiros ou organizações internacionais ou de caráter público.
Antes deste código, apenas no setor do medicamento foram implementadas regras mais apertadas para monitorizar potenciais conflitos de interesse. Qualquer transação – o que inclui brindes, viagens para congressos ou mesmo formações – entre farmacêuticas e pessoas com atividade na área da saúde tem de ser reportada. E aqui o valor mínimo está bem abaixo dos 150 euros impostos no Governo: começou por ser de 25 euros, subiu para 60 euros.
Outra diferença é que todas as transações são publicitadas numa página no site do Infarmed, o que não acontece com as ofertas rececionadas pelo Governo, que estão ainda assim disponíveis para ser consultadas. No Parlamento, é obrigatório declarar atividades susceptíveis de gerar incompatibilidades e quaisquer atos que possam «proporcionar proveitos financeiros ou conflitos de interesses», mas ainda não há limites para ofertas. Nas autarquias, também não há regras definidas. Em 2010, porém, o Código Penal passou a prever o crime de recebimento indevido de vantagem, que se aplica a todos os funcionários que solicitarem ou aceitarem, para si ou terceiro, vantagem patrimonial ou não patrimonial que lhe seja devida, o que inclui ofertas. Arriscam, de acordo com o artigo 372.º, pena de prisão até cinco anos. Excluem-se, porém, «as condutas socialmente adequadas e conformes aos usos e costumes». Mas não existe obrigação de declarar nem uma fiscalização transversal a todo o Estado.
Para Luís de Sousa, fundador e presidente até este ano da Transparência e Integridade, Associação Cívica (TIAC), ressalvas como a dos usos e costumes, assim como o facto de o código de conduta imposto pelo Governo não ter resultado em qualquer sanção para os secretários de Estado que viajaram a convite da Galp, revelam que pouco mudou na forma como o país encara o problema do lóbi. «Não tem faltado ajuda, mas tem havido pouco interesse», diz o investigador auxiliar do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.
Para Luís de Sousa, as mudanças têm surgido quando há pressão mediática, mas na prática não existe uma alteração de paradigma e, em muitos casos, a avaliação acaba por depender da ética de quem está nos cargos. «É preciso reconhecer que nas sociedades contemporâneas, em democracias plurais, existem vários grupos de interesse. Não vale a pena dizer que não existem. Há um interesse superior a respeitar em termos de finalidades sociais e finanças públicas, mas isto não quer dizer que não exista um jogo de interesses. Esse jogo existe em qualquer democracia, tem é de ser transparente», sublinha o investigador. Tornar cada ato público deveria ser a regra generalizada: «É simples: divulguem. A opinião pública é que deve julgar. Qual é a necessidade de ir a uma feira internacional, a uma empresa? Se há interesse, há recursos públicos para o fazer. O Estado não tem de andar a sopas de uma empresa», afirma, recusando o argumento de que o Estado, se a visita é importante, poupa ao aceitar o apoio nas despesas do anfitrião. «Quando não existe essa hipótese, não deixam de entregar as faturas de almoços e jantares aos serviços», exemplifica.
Um reflexão ampla
Para Luís de Sousa, este era o momento de haver uma reflexão mais profunda. Susana Coroado, também investigadora no ICS e autora do livro O Grande Lóbi – Como se influenciam as decisões em Portugal, concorda. Em 2014, foi uma das autoras do relatório ‘Lóbi a descoberto – o mercado de influências em Portugal’ da TIAC, que alertou para o facto de o lóbi continuar sem regulamentação no país. Uma proposta concreta era que fosse implementada uma ‘pegada legislativa’ que permitisse acompanhar os processos de tomada de decisão. Ou seja, um documento que discriminasse a data, o interlocutor e o assunto de cada contacto do legislador com grupos de interesse.
Coroado lembrou ao SOL que quando foi feito este estudo, as entrevistas feitas a deputados, lobistas, empresários e advogados, revelaram que era habitual empresas oferecerem presentes a deputados, nomeadamente viagens ao estrangeiro. Para a investigadora, a criação do código de conduta depois do Galp Gate só teria tido um efeito pedagógico se tivesse tido consequências para os Secretários de Estado envolvidos antes de serem constituídos arguidos. «Pelo contrário, o Governo desculpabilizou-os», diz.
Sobre os últimos casos, a investigadora acredita que não são tanto as viagens em si um problema, mas o facto de haver uma falta de transparência generalizada na contratação pública – e uma aparente correlação entre viagens e aumento da contratação de serviços. «Temos um valor desproporcional de ajustes diretos. Até poderiam viajar, mas haveria concursos públicos e uma adjudicação transparente».
No caso do Parlamento, a investigadora defende que deveriam avançar sanções concretas como as que já existem noutros países europeus como Reino Unido ou na Bélgica, como suspensão do voto e, em última instância, perda de mandato. Uma plataforma que registasse os grupos de interesse como existe na Comissão Europeia seria outra vantagem. Embora não sendo de carácter obrigatório, há cada vez mais eurodeputados que recusam receber quem não esteja registado.
Fazendo uma pesquisa pelas empresas que têm sido referidas nos casos de viagens pagas a titulares de cargos políticos e funcionários da administração pública, são mais de 11 mil as entidades registadas desde 2011. E estão lá a Galp, Huawei, Oracle ou a Microsoft. A Microsoft surge mesmo no top 10 das empresas que tiveram mais reuniões com oficiais da Comissão Europeia no último ano declarado, 78 no total. Por ano, as atividades ‘lobistas’ da empresa, de acordo com o lobbyfacts.eu – que congrega estatísticas do registo europeu – têm totalizado valores acima dos 4 milhões de euros.
A Galp Energia inscreveu-se no registo de transparência da UE em janeiro de 2015. No ano passado, declarou ter gasto menos de 10 mil euros e teve cinco contactos com deputados ou funcionários da Comissão Europeia. A Huawei está no registo desde 2013. Em 2015, último ano com dados disponíveis, gastou 2,8 milhões de euros em atividades lobistas e fez 33 contactos em Bruxelas.
O Ministério Público revelou já que está a recolher indícios sobre as viagens a convite da Microsoft e está a investigar as viagens pagas pela Huawei, NOS e Oracle, inquéritos em segredo de justiça. Além do recebimento indevido de vantagem, o Código Penal prevê os crimes de corrupção e tráfico de influência. Luís de Sousa sublinha, ainda assim, que muitas das vezes o problema não é aceitação de uma vantagem a troco de uma decisão favorável, pode ser simplesmente a omissão. Uma relação contínua que gera um ambiente implícito de boas relações, que acaba por «influenciar o contexto em que as decisões são tomadas». Onde está a fronteira? Nunca será fácil de estabelecer. A transparência é o único escudo.