Síria. A guerra depois do califado

O Estado Islâmico está moribundo. Travará ainda guerras sangrentas nas duas últimas cidades sírias, mas o seu fim, ao que tudo indica, está para breve. Dos escombros do seu califado pode gerar-se uma nova guerra. Ontem recomeçaram, em Astana, as negociações de um cessar-fogo para a Síria lideradas por Rússia, Turquia e Irão

Em breve desaparecerá o califado que Abu Bakr al-Baghdadi proclamou numa mesquita iraquiana há pouco mais de três anos. Na realidade, o califado nunca existiu, da mesma maneira que o Estado Islâmico nunca foi o país que o seu nome dá a entender. Por esses dias, no entanto, o grupo tinha ao menos território por onde fingir. No seu apogeu, o Estado Islâmico governou quase a mesma área do Reino Unido e cerca de dez milhões de pessoas. Mas muito mudou desde 2014. Hoje, os extremistas controlam apenas duas cidades importantes, ambas na Síria e as duas cercadas. E o que lhe resta para além delas são territórios rurais.

Al-Baghdadi, aliás, viu o seu suposto califado esvair-se em 90% no Iraque e 85% na Síria, e, no início de setembro, o enviado especial das Nações Unidas para a guerra civil disse que o grupo jihadista pode perder as duas últimas cidades já em outubro. “Haverá um momento de verdade”, disse Staffan de Mistura à BBC, falando do momento em que os jihadistas estiverem derrotados. “Se a comunidade internacional ajudar tanto a oposição como o governo e insistirem com eles a aceitar uma negociação real, então, no prazo de um ano, podemos ter a possibilidade de organizar eleições credíveis”, explicou, mais otimista quanto à ideia de as forças que sobreviverem à guerra contra os jihadistas se poderem entender em poucos meses do que em relação à derrota iminente do grupo. A guerra contra o Estado Islâmico não é o fim da guerra síria.

Não se deve ignorar a violência da luta contra os jihadistas, especialmente no seu final. As batalhas contra o Estado Islâmico são tão mais sangrentas quanto mais às cordas está encostado o grupo, como a guerra em Mossul demonstrou – nessa batalha terão morrido cerca de 40 mil civis, segundo alguns relatos de agências de espionagem obtidos pelo “Independent” em julho. Mas o otimismo de De Mistura sustenta-se em indicações de que os extremistas estão, de facto, moribundos. À queda de Alepo e ao fim simbólico dos rebeldes no norte do país seguiu-se uma série de acordos de fuga assinados entre Bashar al-Assad e grupos armados sunitas que concentrou estes últimos no leste do país, na província de Idlib, onde por agora estão praticamente desamparados e não representam perigo de maior para o regime. Isso permitiu ao exército sírio e às milícias iranianas que o sustentam concentrarem-se enfim no Estado Islâmico que há muito iam ignorando: são elas, com apoio de caças russos nos ares, que cercam por estes dias Deir Ezzor, uma cidade no leste, rica em petróleo e onde os jihadistas mantiveram forças do regime cercadas por dois anos. Uns 150 quilómetros a noroeste situa-se Raqqa, em tempos a suposta capital dos jihadistas, que está cercada e – segundo os últimos relatos, 70% conquistada – por uma coligação de curdos e árabes sunitas apoiada pelos Estados Unidos.

Autocarros no deserto

O Estado Islâmico, por outras palavras, é o alvo consensual das forças estrangeiras pela primeira vez desde que entraram na guerra civil síria. O grupo pode sobreviver vários meses nas suas cidades, mas, com bombardeamentos russos de um lado e ataques aéreos americanos do outro, o seu destino na Síria parece traçado – o que não é o mesmo que dizer que não sobreviverá reencarnado noutros locais, como na Líbia, Afeganistão ou sudeste asiático.

Ao longo desta semana, aliás, numa demonstração de como o grupo é um espetro da sua forma inicial, uma coluna com 16 autocarros e 600 pessoas, vinda de territórios antigos do Estado Islâmico, cirandou por vários dias nos desertos e estradas rurais da Síria em busca de porto de abrigo. Nos autocarros encontravam-se combatentes extremistas e as suas famílias, que esperavam proteção do regime sírio e do Hezzbollah depois de terem negociado a saída de um pequeno reduto na fronteira com o Líbano, a troco de um prisioneiro e dos cadáveres de combatentes mortos da milícia xiita. Os Estados Unidos seguiram-nos durante dias desde os ares, assegurando que não faziam parte do acordo e que o grupo não iria a lado algum, mas prometendo não disparar por lá se encontrarem mulheres e crianças. Em todo o caso, a coluna, já sem alguns dos autocarros, que voltaram para trás, chegou ontem a uma aldeia de Deir Ezzor. Tão-pouco lá estarão a salvo.

Negociações

A derrota quase certa do califado pode trazer consigo uma nova guerra, tão sangrenta quanto as que se travam hoje e com lealdades menos definidas. Ontem começou a sexta sessão de negociações encabeçadas por Rússia, Turquia e Irão em Astana, no Cazaquistão, onde as três potências estrangeiras, que se vêm aproximando noutros temas, procuravam acordos de cessar-fogo para algumas regiões ainda quentes. Até hoje, porém, nada saiu de relevo do eixo de Astana, mas isso pode mudar em breve, à medida que os grupos rebeldes apoiados por países do Golfo vão perdendo a atenção do mundo, vão deixando de ter as armas enviadas nos seis anos de conflito e se sentem pressionados para acomodar mais exigências do regime (ver texto ao lado).

Mas, mesmo um acordo entre o regime e os rebeldes de Idlib não assegurará a paz depois do Estado Islâmico. São os curdos quem estão em vias de tomar Raqqa, os mesmos que dominam uma vasta faixa de território no norte do país e tanto perturbam a Turquia, que se preocupa com a ligação aos seus próprios grupos separatistas. E são também eles que insistem em clamar o direito à autodeterminação que poucos imaginam que lhes vá ser cedida pelo regime ou os seus patrocinadores estrangeiros, principalmente tendo em conta a nova amizade turca. A guerra pode estalar de novo nos mesmos territórios em que o Estado Islâmico será derrotado em breve.