Sem falhas, mas sem conseguimentos. Discreto. Mais agregador que Ban Ki-moon. Com os mesmos riscos de Boutros-Ghali. Numa conjuntura ingrata. Sem grande poder.
As explicações são muitas, talvez porque as expectativas também o eram. Nove meses depois, é António Guterres que está a desiludir ou é muita opinião pública que estava antes iludida? O SOL falou com diplomatas, analistas, académicos e velhos amigos do secretário-geral das Nações Unidas. E levou essa pergunta.
Unir as Nações Unidas, passo o pleonasmo
Até agora mantendo o compromisso com a paridade de género nas nomeações feitas, aumentando o escrutínio às equipas de manutenção da paz, o ímpeto reformista falta em concretização mas mora em espírito. «O que é evidente é que ele quer uma Organização das Nações Unidas literalmente fiel ao seu nome. Organizada, unida e inclusiva entre nações», conta uma fonte interna que se absteve de comentários mais longos e pediu anonimato.
A professora universitária de Relações Internacionais Lívia Franco aponta que «talvez se tenha partido de um entendimento errado do que ele poderia fazer». «O secretário-geral não está a falhar, não se pode é partir do princípio que o secretário-geral tem certas competências ou capacidades que não tem», sustenta a professora do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica. «O secretário-geral é isso mesmo: um secretário-geral. É o chefe burocrático de uma organização. Aquilo que são decisões possíveis ou impossíveis têm a ver com os Estados, não com o secretário-geral», defende. «Pode facilitar que certos temas tenham destaque na agenda, pode entusiasmar os Estados – que é aquilo que tem feito – mas há um claro desfasamento entre o que são as expectativas da opinião pública internacional e aquilo que é, de facto, a realidade internacional». A académica vê António Guterres como «muito mais mobilizador que Ban Ki-moon», o antecessor no cargo. «Outra coisa é se as coisas se concretizam, mas isso não é da responsabilidade do secretário-geral. É da responsabilidade dos Estados», remata. Incluindo levar em frente a reforma do Conselho de Segurança.
O embaixador Francisco Seixas da Costa, que foi secretário de Estado de Guterres e protagonista nas negociações orçamentais que viabilizaram os governos minoritários do então líder socialista, aponta para outra hipótese: «Trump». De acordo com o veterano diplomata, «a doutrina» do presidente norte-americano não tem ajudado devido à sua «falta de interesse nos mecanismos multilaterais». «Isto dificulta a execução do programa de candidatura de António Guterres, evidentemente. Sem uma América cooperante, nenhuma reforma na ONU funciona.»
Segundo Seixas da Costa, hoje, «a conjuntura internacional é profundamente desfavorável a uma afirmação da ONU», descrevendo o papel do secretário-geral das Nações Unidas como «complexo», na medida em que tem que ser «um ‘honest broker’ do Conselho de Segurança». Ou seja, só conseguindo «afirmar a sua importância se agregar a vontade dos cinco países do Conselho de Segurança»: os Estados Unidos da América, a Federação Russa, a República Popular da China, a Grã-Bretanha e a França.
«Há uma crispação da Rússia, em reação à humilhação da Guerra Fria, uma nova assertividade da China… Tudo isso dificulta o papel da ONU, não tendo a Europa sido um grande amigo ultimamente», adianta Seixas da Costa, concluindo que «um debate internacional é impossível quando a tensão é incontrolável».
A empatia não chega
O correspondente luso-germânico Miguel Szymanski, analista de política internacional na RTP, dá outro olhar à problemática entre Nova Iorque e a Casa Branca. «Dizer, como Guterres o fez, que é preciso fazer mais com menos é o que a administração Trump quer ouvir, mas na realidade ninguém vai fazer mais com menos, muito menos as Nações Unidas», atira. Para Szymanski «as limitações da ONU enquanto organização e do cargo de secretário-geral são bastante óbvias. Quanto mais um secretário-geral se escuda atrás de retórica vazia mais óbvias se tornam as limitações e mais nitidamente se vê que está de mãos atadas. A Guterres falta, enquanto secretário-geral da ONU, o mesmo que lhe faltava enquanto primeiro-ministro de Portugal: estatura, capacidade, firmeza e uma pitada de carisma», prossegue. «Empatia, empenho e amor ao próximo são qualidades apreciáveis mas não chegam. A comunidade internacional, a começar pela imprensa internacional, começou a perceber isso», examina, considerando que o seu balanço «é negativo» e terminando: «Mesmo que Guterres estivesse à altura do cargo, contra Trump e a embaixadora Nikki Haley, com todo o peso dos Estados Unidos na ONU, teria reduzidas probabilidades de sucesso».
Esta semana, os dois homens estiveram juntos e discursaram, cada um por si, na Assembleia-Geral das Nações Unidas. Antes, excecionalmente, deu-se uma reunião à mesma mesa sobre a reforma da organização. Trump saudou o legado da ONU no que diz respeito aos direitos das mulheres. Guterres insistiu numa questão em que o presidente dos EUA tem sido intermitente: o ambiente. O multilateralismo, como dito pelos especialistas escutados pelo SOL, é uma divisão, sendo que para o português é uma questão de princípio e para o magnata uma questão de meio. À parte disso, os sorrisos foram vários.
Nuno Garoupa, professor universitário no Texas e antigo presidente da Fundação Francisco Manuel dos Santos, vaticina que o homem dos consensos tem a pouca sorte de viver num tempo escasso em consenso. «Penso que Guterres é uma personalidade que sabe construir consensos, mas é aquilo que aqui se chama conflict-avoider. Em ambientes ou situações em que falta a harmonia e o conflito é necessário, esse tipo de personalidade falha», diz o académico português. «Em 1995, saímos do cavaquismo divisionista e em crise, e a harmonia fazia sentido. Em 1999, era preciso escolher caminhos e Guterres foi incapaz de optar», recorda também, ao SOL. «Neste momento, com Trump, Putin e tudo o resto, não me parece o tempo dos consensos». E, por isso, dificilmente será o tempo de Guterres.
Sem faltas, mas sem resultados
António Martins da Cruz, diplomata de carreira e antigo ministro dos Negócios Estrangeiros, avalia ao SOL que, como secretário-geral da ONU, Guterres «tem feito um percurso sem faltas, mas sem resultados».
«Não está de mãos atadas, mas tem que respeitar os interesses geoestratégicos dos membros permanentes [do Conselho de Segurança]. É óbvio que o secretário-geral não é um ‘super-homem’, mas está obrigado a navegar sem ofender os interesses dos cinco membros», lembra Martins da Cruz, que traz o exemplo de Boutros-Ghali como «um excelente ex-secretário-geral que não foi reeleito – só fez cinco anos – porque se opôs aos Estados Unidos da América».
«A manutenção da paz e da segurança internacionais são da competência exclusiva do Conselho de Segurança e o secretário-geral atua nesse e noutros domínios: com mandatos do Conselho de Segurança», explica o veterano da diplomacia. «Pode seguramente tomar iniciativa de propor soluções ao Conselho de Segurança, mas a sua linha de atuação tem que respeitar sempre as determinações do Conselho de Segurança», assegura.
«Na maioria das situações ditas de crise – a Palestina, a Síria, a Coreia do Norte, – o Conselho de Segurança está geralmente bloqueado. E porquê? Porque os cinco membros permanentes não se entendem – sobretudo os Estados Unidos, a Rússia e a China exercem frequentemente o direito de veto quando as soluções se opõem aos seus interesses – o que tanto dificulta como facilita a tarefa do secretário-geral, António Guterres». Há, portanto, um paradoxo.
«Por um lado, é difícil porque ele tem que respeitar os mandatos que recebe. Por outro facilita porque isto cria uma zona cinzenta onde o secretário-geral pode navegar sem ofender os interesses – já referidos – dos cinco membros do Conselho de Segurança». Para Martins da Cruz, «é nessa situação dúbia que pode nascer a relevância do engenheiro Guterres e a sua capacidade de consensos». Porém, uma coisa que o homem que já carregou a pasta da política externa portuguesa assegura: na arena internacional, «a situação é de crise».
Pudera.