Tudo começou com um pneu furado. Richard Gere e o seu amigo Herb Ritts viajavam numa estrada de San Bernardino, Califórnia, quando o carro da namorada do ator, um Buick, ficou com um pneu em baixo. «Na altura o Herb estava a começar a fotografar e o Richard Gere estava também no início da sua carreira de ator», explica Frank Considine, o homem que durante vários anos revelou as fotografias de Ritts na câmara escura. Os dois amigos encostaram numa estação de serviço para resolver o problema e, enquanto esperavam, Herb sacou da sua máquina fotográfica e pediu a Gere para fazer algumas fotos. Atrás do ator, via-se o Buick levantado para trocar o pneu. «O Richard precisava de novas fotos porque tinha um filme a sair», continua Considine. «Mandaram a imagem para as revistas, e de repente houve uma, duas, três revistas importantes que a escolheram. Um dia, o Herb recebe uma chamada a dizer: ‘Vimos a sua foto do Richard Gere, pode vir amanhã fazer um trabalho para nós?’».
De um momento para o outro, Herb Ritts, que nem era fotógrafo, entrou para a ribalta e começou a ser solicitado por revistas de moda. Daí a tornar-se o fotógrafo das celebridades foi um passo. Retratos de figuras como Michael Jackson, Madonna, David Bowie, Jack Nicholson, Julia Roberts, John Travolta ou Elizabeth Taylor feitos pelo norte-americano podem ser vistos no Centro Cultural de Cascais até janeiro de 2018.
A exposição é comissariada por Alessandra Mauro, que se apaixonou pela arte de Ritts quando viu uma exposição da sua obra na fundação Cartier, em Paris, em 1999, e conta com um pouco mais de uma centena de fotografias. O título – Herb Ritts. In Full Light (Em Plena Luz) – «foi escolhido porque a esmagadora maioria das imagens feitas por Herb Ritts presentes nesta exposição foram feitas com luz natural», explica a curadora italiana. «Isso é algo muito especial em Herb Ritts e muito diferente do que outros fotógrafos de moda fazem. É inacreditável pensar que a imagem de Madonna na capa do álbum True Blue foi feita à uma da tarde, com uma luz incrivelmente forte», conta Alessandra Mauro.
Madonna foi apenas uma das muitas celebridades que Ritts fotografou ao longo da vida – foi ele, por exemplo, que fez as primeiras fotografias da cantora depois do seu casamento com Sean Penn, em 1986. «Quando Madonna fez o primeiro filme, Desperatelly Seeking Susan, o Herb foi contratado para fazer fotografias para o cartaz do filme», explica Considine. «Desde aí ficaram amigos muito chegados».
Qual o segredo de Ritts para conquistar a confiança das celebridades? «Tendo crescido em Los Angeles, ele conviveu sempre com esse meio, não ficava nada intimidado com as celebridades», nota Considine. «O Herb era maravilhoso a lidar com os outros, conseguia fazê-los sentirem-se muito à vontade, e sabia tirar o melhor de cada um. As pessoas que lhe pediam retratos sabiam que ele as compreendia e isso deixava-as confortáveis». Alessandra Mauro complementa: «Todas as celebridades dizem que ele era uma pessoa sempre de bom humor, muito simpática».
Moda sem futilidade
Filho de um empresário e de uma decoradora de interiores, Herb Ritts Jr. nasceu em 1952 «num ambiente muito bom», explica Alessandra Mauro. O bairro de Brentwood, onde vivia a sua família, era um dos mais elegantes dos arredores de Los Angeles – ainda hoje é o local de residência de muitas celebridades (foi ali, também, que se deu o crime de homicídio pelo qual O. J. Simpson, antiga estrela de futebol americano, está preso).
Herb estudou História da Arte no Bard College, em Nova Iorque, e regressou a Los Angeles. «Ele sempre se interessou por fotografia mas não penso que de início pensasse tornar-se um fotógrafo profissional», diz a curadora. «Mas aos poucos e poucos experimentou e foi bem-sucedido». O retrato de Gere na estação de serviço fez o resto. «Quando se tornou fotógrafo, ficou famoso muito cedo. O seu toque e o seu estilo foram desde logo apreciados por muitas grandes revistas, como a Vogue, a Esquire, a Elle e outras».
Mesmo quando fazia as produções de moda que essas revistas lhe encomendavam, na sua maioria a cores, o fotógrafo fazia sempre alguns disparos para si, a preto e branco. «Mesmo que estivesse a realizar um trabalho para uma revista, a sua abordagem era sempre como se estivesse a fazer fotografias para si próprio», descreve Considine. «As imagens artísticas eram sempre a preto e branco».
Com as receitas que resultavam de ser um profissional altamente desejado, Herb Ritts começou também a colecionar os mestres da fotografia americana e europeia. «Se vir com atenção todas estas imagens e for a seguir ver a exposição, consegue reconhecer nalguns casos a fonte de inspiração», considera Mauro. Outra fonte de inspiração terá sido a própria História da Arte, em particular a grande tradição ocidental do nu. Talvez por isso as suas fotografias sejam tão clássicas. A partir do mundo saturado de futilidade da moda, Ritts criou imagens intemporais, despojadas e quase escultóricas. «Se tirarmos os títulos, a sensação de tempo está quase ausente das imagens», nota Frank Considine, numa altura em que ainda falta colar as legendas da exposição na parede. «Podiam ter sido feitas nos anos 30 ou hoje», concorda a curadora italiana.
Este traço foi aliás explicado pelo próprio criador. «A minha fotografia centra-se nesta interrogação: como expor o corpo humano de uma maneira atual? Não me interessa idealizar o corpo humano […] prefiro expor a sua universalidade e aptidão para transcender o tempo», escreveu Herb Ritts. «Gostaria de criar imagens que, passados 100 anos, não ostentem o mínimo sinal de envelhecimento».
O despojamento resultava também de dispensar «todo o tipo de adereços ou acessórios», como explica o antigo responsável pela revelação das fotos de Ritts. «Estas fotografias são muito simples, muito clássicas e apuradas, ele não precisava de truques. Muitas foram tiradas no terraço do estúdio do Herb, com fundos muito simples, como o céu. Não havia distrações. Ele conhecia muito bem a luz, mas também conhecia a sombra». O deserto dos lagos secos em Los Angeles era outro dos seus cenários favoritos.
Uma das exceções ao uso da luz natural é, curiosamente, um dos ícones de Ritts – e até de toda uma época. «Este é o grande ícone dos anos 80, a fotografia das cinco supermodelos – é das poucas da exposição que não foram feitas com luz natural, porque foi tirada em casa do Herb Ritts», esclarece Mauro, sobre a foto que junta Stephanie Seymour, Cindy Crawford, Christy Turlington, Tatjana Patitz e Naomi Campbell. «É uma imagem muito simples e ao mesmo tempo tem uma composição complexa, muito dinâmica. A forma como capta os olhares das raparigas é incrível, porque se vê a glória da beleza, mas ao mesmo tempo percebe-se como essa beleza é frágil e passageira. Representa a fragilidade da beleza e a fragilidade de uma época de ouro».
Pode resultar perturbador que tantas das personalidades retratadas por Herb Ritts tenham já morrido – Bowie, Seymour Hoffman e Michael Jackson são apenas três exemplos. Dois dos retratos mais impactantes são precisamente de dois atores já desaparecidos: Christopher Reeve (o Super-Homem) na super-sofisticada cadeira de rodas a que ficou preso depois de uma queda de cavalo e Elizabeth Taylor depois de uma operação à cabeça, com a cicatriz bem à mostra. «Tem aqui alguém que está a sofrer muito», afirma a curadora. Em certo sentido, é o oposto das qualidades celebradas por Herb Ritts. Mas se a juventude já se foi, a beleza também está lá, a par do drama, do estoicismo e da dignidade.