Eslovénia. Afinal era só preciso acender a luz

Uma viagem de um mês pelos Balcãs começa na capital eslovena – Ljubljana – com uma experiência pouco auspiciosa. Para lá das duas da manhã, procurando onde dormir, chegamos a um local sinistro. Haverá perigo?

Os aeroportos sempre me fascinaram. Lembro-me perfeitamente de ser criança e participar numa visita de estudo do infantário para conhecer o espaço e a logística que tornavam possível os aviões levarem pessoas para outros lugares. Foi nesse dia que se me desvaneceu o mito, que eu própria havia criado, de que os aviões sabiam as direções certas porque as nuvens tinham placas devidamente assinaladas. Este seria apenas um dos primeiros choques que a realidade traria com o tempo. No final da visita ao Aeroporto Sá Carneiro, quando os meus pais me foram buscar, mal sabiam que, pela nossa vida em diante, muitas vezes me iriam ver a descolar e a voltar àquela pista.

Adorava começar este diário de bordo a explicar que adoro viajar sem procurar o que visitar nos locais, sem criar qualquer tipo de expectativa sobre o que vou encontrar, mas a verdade é que desta vez não tive mesmo tempo para preparar absolutamente nada. Quando propusemos à direção deste jornal viajar pelos Balcãs durante um mês, com registo jornalístico e produção de conteúdos constante, limitei-me a aproveitar o pouco tempo que tinha disponível, quando saía da redação ao fim de um dia de trabalho, para estudar melhor a História e os contextos do que iríamos encontrar. Eslovénia, Croácia, Bósnia, Kosovo, Macedónia, Roménia, Sérvia, Hungria e Alemanha: um mês numa viagem que ainda nem tinha começado e já nos alertava para o início de toda uma nova vida.

Chegar a Veneza não foi difícil: bastou apanhar um comboio na Estação Central de Milão. Esperavam-me cerca de três horas de viagem numa carruagem vazia, que me deixou respirar o alívio de quem corre a toda hora contra o tempo e que tantas vezes tarda em encontrar-se pelo meio. O pior foi mesmo orientar-me por Veneza, onde os barcos e as gôndolas não chegam para a invasão de turistas que tão pouco podem informar aqueles que andam desorientados à chuva.

Estava sozinha e já passava da meia noite. Não conseguia perceber como haveria de chegar ao Generator Hostel e o que me valeu foi um casal de italianos idosos que, com muito boa vontade, ampliaram o meu Google Maps e me orientaram pelos barcos até Zitelle, onde me esperava, finalmente, uma cama em condições por 35 euros. Não é possível discutir o quão bonita é Veneza, desde as cores das impermeáveis dos que passeiam pelos edifícios antigos ao nascer do sol a que mais tarde assistiria. Bem sei que a tudo se habitua um ser humano, mas os nervos e o cansaço gritavam-me perante o cenário tão pouco prático que é o de termos de nos deslocar de barco, com todos aqueles barulhos, abanões e, pior de tudo para o meu estômago, aquela maldita ondulação.

Nas escadas do hostel estava um australiano a cair de bêbedo e um norte-americano mais jovem a fumar um cigarro. Deram-me as boas-vindas e falaram-me das suas estadias prolongadas pela “cultural e extravagante Europa”. Com o hostel a abarrotar, foi uma sorte ter encontrado onde dormir. Na minha camarata mais sete jovens viajantes deixariam ao outro dia o quarto para prosseguir viagem. Uma camarata cheia de norte-americanos a desbravar território europeu.

A Diana, minha companheira de viagem, finalmente chegou a Itália. Encontrámo-nos em Santa Lucia para apanhar um autocarro para Veneza Mestre, onde teríamos de encontrar o nosso autocarro para Ljubljana. Entre telefonemas e correrias pedi-lhe que me fosse comprando o bilhete. De impermeáveis e mochilas gigantes às costas, com computadores, máquinas de fotografar, filmar, baterias suplentes, carregadores e outros gadgets que tais, abraçámo-nos em pleno autocarro como se não nos víssemos há mais de vinte anos. Todos nos olhavam com estranheza e de repente a viagem até Mestre parecia interminável. Ao relembrar como arranhar o meu italiano de outrora, decido perguntar quanto tempo nos restava para a estação. “Estão a ir na direção errada, já deviam ter saído há muito”. De repente vi os bilhetes do autocarro para a Eslovénia a esvoaçarem pela carteira fora. Saímos do autocarro em pânico, a tentar relembrar todas as orações que os nossos avós faziam em momentos em que precisavam de chamar a sorte. Quando apertado, até um ateu reza e assim fomos nós a cambalear até outro autocarro que em contrarrelógio nos levou até Mestre. Bendita seja a pontualidade italiana, devemos dizer, já que não só não chegámos atrasadas como ainda deu para esperar à chuva e comprar jantar. O hostel que havia marcado para a primeira noite na Eslovénia afinal foi cancelado e escolhi o primeiro que o Hostel World me recomendou.

Da viagem lembro-me pouco, já que a passei de boca aberta e olhos fechados. Mas a chegada à Ljubljana foi épica. Eram duas da manhã, queríamos comer e os preços do Box Bar diziam que era ali mesmo que devíamos parar para um enorme hambúrguer vegetariano por três euros e meio. Seguimos as coordenadas e com a ajuda da tecnologia lá fomos as duas a pé até ao bairro que deveria ser o nosso.

Devo dizer que por vezes é um perigo confiarmos à tecnologia o discernimento de se virar para a direita ou para a esquerda. Ali estávamos nós. Exaustas, curvadas, de pés inchados, com impermeáveis e kispos, enquanto a seta nos indicava para virar à direita. Desse lado havia um portão de ferro, um monte de cartazes que me eram familiares de festivais de Metal e Hardcore, pinturas em todas as paredes. Não se via vivalma, só um monte de instalações metálicas, representações daquilo que nos pareciam aliens, com expressões de horror e mãos enormes. O silêncio era aterrador e a Diana agarrava-se a mim como se um abraço nos pudesse salvar do apocalipse. “Que sinistro, que cena do mal”. Não fazíamos ideia de onde estávamos e temíamos por todo o material que guardávamos connosco. E ser mulher nunca ajuda nestas alturas. Um homem saiu da escuridão, saltámos – hostel nem sinal dele. Há escadas, não há escadas. Há perigo, não há perigo. Um suspiro de alívio: vemos luzes acesas. Estamos vivas e vamos dormir.

 Ao pequeno almoço, um funcionário fala-nos em português e tudo se torna mais familiar. Vem de Cabo Verde. Ao sairmos pela porta, a realidade faz agora mais sentido. Estamos no coração de Metelkova, o bairro alternativo que já foi terra de ninguém, centro da vida antissistema e da pseudoanarquia, o pulsar do limite da sociedade. Estamos no coração da arte e da resistência. Metelkova ao nascer do dia, afinal, é só cor. Tudo o que nos faltava era um pouco de luz.