A defesa do vice-presidente de Angola apresentou nos últimos dias um requerimento no âmbito da ‘Operação Fizz’ em que arrasa o Ministério Público português. O documento que deu entrada no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa na quinta-feira – e a que o SOL teve acesso – começa mesmo por referir que os autos chegaram a julgamento «de forma surpreendente, súbita, ilegal e violadora de princípios e direitos fundamentais» da ordem jurídica e «do Direito Internacional».
Neste processo, Manuel Vicente é suspeito de fazer parte de um esquema, montado em 2011, que tinha por objetivo travar investigações do Departamento Central de Investigação e Ação Penal em que o próprio era visado. Para tal, defende o Ministério Público, terão sido pagos subornos ao antigo procurador daquele departamento responsável pelos respetivos inquéritos – o magistrado Orlando Figueira.
O governante está acusado por um crime de corrupção ativa, um crime de branqueamento e um crime de falsificação de documento. O antigo procurador, por seu turno, está acusado por corrupção passiva, branqueamento, violação de segredo de justiça e falsificação de documento. O caso foi agora finalmente distribuído para julgamento.
Ainda que já tenha sido deduzida acusação e pronúncia (em junho), ou seja, se esteja apenas à espera do início do julgamento, a defesa de Manuel Vicente garante que todo este caso não passa de uma ilegalidade, uma vez que o seu cliente nem sequer foi notificado de nada – isto além da imunidade, que, defendem os advogados, seria motivo suficiente para que este caso nunca tivesse prosseguido contra o número dois do Governo angolano cessante. E apoiam mesmo esta posição num parecer pedido aos professores da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Jorge Reis Novais e de Tiago Fidalgo Freitas.
A defesa do vice-presidente angolano quer, por isso, que seja reconhecida a imunidade, alegando que, se tal não acontecer, a única alternativa terá de ser a da separação da parte relativa a Manuel Vicente, para que possa ser enviada para as autoridades angolanas e tramitar na Justiça de Angola. Separação que afirmam poder ser feita ainda nesta fase processual.
O entendimento do MP português, citado no requerimento agora apresentado, sobre a imunidade de Manuel Vicente foi o de que Portugal não teria de respeitar a imunidade, uma vez que os factos foram cometidos em território nacional.
A defesa rebate tal argumento, dizendo inclusivamente que nem mesmo os alegados factos poderiam ter sido cometidos em território nacional: «Quando da acusação proferida nos presentes autos não resulta um único facto imputado ao senhor engenheiro Manuel Domingos Vicente que se afirme ou situe em Portugal». Insistindo na imunidade, os advogados deixam claro que «as Autoridades Judiciárias Portuguesas [careciam] de legitimidade para iniciar uma ação penal contra» aquele governante estrangeiro.
Uma mentira do MP?
Um dos pontos que é salientado no requerimento a que o SOL teve acesso prende-se com o facto de o MP ter proferido um despacho, após a acusação, que permitiu que o caso seguisse para julgamento e que referia o seguinte: «Mostrando-se ineficazes os procedimentos de notificação em relação ao arguido Manuel Vicente e encontrando-se quanto aos restantes arguidos decorrido o prazo de requerimento de abertura de instrução, remetem-se os autos à distribuição do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa».
Os advogados do vice-presidente de Angola consideram que, neste ponto, o MP, além de desrespeitar a imunidade, terá partido de premissas «erradas» e «inexistentes».
Garante-se no documento que foi Manuel Vicente quem entrou em contacto com o MP quando saiu na imprensa nacional, no início do ano passado, que era alvo de uma investigação. E mais: o titular da ação penal só terá procurado o governante para o constituir arguido após o fim do inquérito.
É afirmado que durante o inquérito o MP português ainda chegou a preparar uma carta rogatória para enviar para Angola, mas que acabou por não a enviar, porque «(‘lendo a mente’ de um outro Estado…) entendeu que a mesma iria ser rejeitada pelas autoridades judiciárias angolanas».
Assim, continua a defesa, só após «o encerramento do inquérito, e depois de proferida a acusação a 16 de fevereiro de 2017, é que o Ministério Público decidiu, pela primeira vez, procurar constituir arguido o senhor Engenheiro Manuel Vicente, determinar a prestação de termo de identidade e residência»: «E fê-lo – pasme-se! – através de uma carta rogatória (a segunda), datada de 21 de fevereiro de 2017, e remetida para as autoridades judiciárias angolana – agora em diferente ‘leitura da mente’ de um outro Estado, o mesmo por sinal cuja mente o Ministério Público antes ‘lera’ de forma diferente…»
Mas então onde é que entra a suposta mentira dos investigadores portugueses? É que, segundo é descrito no documento a que o SOL teve acesso, no despacho de encerramento de inquérito era referido que tinha sido enviada uma carta rogatória para Luanda para que Vicente fosse constituído arguido e pudesse prestar declarações, quando, de acordo com os advogados do governante, nenhuma rogatória dera entrada na Procuradoria-Geral de Angola até essa data.
MP não esperou pela resposta de Luanda
Se a primeira carta rogatória não seguiu, à segunda não foi dado tempo sequer para se responder, defende o vice-presidente daquele país africano. «Dos autos resulta que, em 5 de maio de 2017, o Ministério Público concluiu que não se vislumbrava que as autoridades judiciárias angolanas viessem a responder definitivamente à carta rogatória (a segunda) expedida após o final do inquérito, podendo, por isso, comprovar-se a ineficácia dos procedimentos de notificação da acusação».
Ou seja, os advogados de Manuel Vicente afirmam que o MP não quis esperar pela resposta, considerando, mesmo antes de qualquer reação de Angola, que a rogatória não seria cumprida. E vão mais longe: «A alegação de que a carta rogatória havia sido rejeitada pelas autoridades angolanas era absolutamente falsa e foi inventada pelo Ministério Público com base, exclusivamente, na aparente vontade que este tinha de, rapidamente (…) e naquele momento, fazer o processo prosseguir».
O Ministério Público tinha neste caso a necessidade de acautelar alguns prazos, uma vez que um dos arguidos se encontrava privado de liberdade, mas, segundo a defesa, isso não justifica a opção tomada, até porque havia a hipótese de logo nessa altura ter sido feita a separação da parte do processo de Manuel Vicente, que agora se requer.
De acordo com o requerimento, embora formalmente, após a distribuição, todos os processos possam estar em fase de julgamento, «materialmente» o de Manuel Vicente ainda «se encontra em fase de Inquérito, pois não lhe foi até ao momento notificada a acusação».
Vaivém de cartas entre Lisboa e Luanda
Desde que foi tornado pública a investigação a Manuel Vicente que a Procuradoria-Geral da República já enviou mais do que uma carta para o seu homólogo angolano, solicitando esclarecimentos sobre a lei daquele país e os trâmites a seguir. Logo em novembro de 2016, uma missiva de Lisboa questionava João Maria de Sousa sobre se havia possibilidade de ser cumprida uma carta rogatória em que se solicitasse declarações de Manuel Vicente, bem como a constituição como arguido e a aplicação do termo de identidade e residência. Perguntava-se ainda se havia possibilidade de levantamento de imunidade ou de extradição. A terminar, sondava-se a hipótese de Angola receber o procedimento penal para transitar na Justiça daquele país.
Poucos dias depois, o PGR angolano responde, referindo a impossibilidade de cumprir uma carta rogatória naqueles termos, dada a imunidade de que goza, e adiantando que a extradição também não seria possível, dado ser cidadão angolano e estar em território angolano. João Maria de Sousa, termina dizendo que caso Portugal requeira a transmissão do procedimento a mesma seria ponderada. O SOL sabe que a partir daí ainda foram trocadas algumas outras correspondências sobre dúvidas legais. A última das quais, enviada por Luanda em julho deste ano, terá ficado sem resposta de Lisboa.
O órgão máximo do MP daquele país referia nessa correspondência que a carta rogatória enviada de Lisboa para Luanda «ofende o estatuído na Constituição da República de Angola, constituindo motivo de recusa previsto na alínea e), n.º 1 do artigo 3.º, da Convenção de Auxílio Judiciário em Matéria Penal entre os Estados da Comunidade Países de Língua Portuguesa (CPLP)». Na missiva solicitavam-se por isso alguns esclarecimentos, bem como se procurava saber se se mantinha ou não o interesse de Lisboa enviar para Luanda o processo.
O procurador geral de Angola questiona mesmo a sua homóloga de Portugal sobre o interesse do Governo português em manter os acordos de cooperação judiciária com o Estado angolano.
E, frisando a sensibilidade do tema para as relações entre os Estados, o PGR angolano deixou claro que iria dar conhecimento daquela carta ao ministro da Justiça de Angola e ao Presidente da República.