A extrema-esquerda e a propriedade privada

Na campanha das eleições autárquicas pouco ou nada se discutiram temas de relevância autárquica, como é o caso da alteração ao regime jurídico do alojamento local, vigente desde 2014. Nomeadamente, a sua importância para as cidades. E se o alojamento local é uma maldição ou uma solução milagrosa para a atratividade e a competitividade turística…

«Há uma clara cultura de proprietário em Portugal».

Ricardo Sousa

 

É pena que a ‘nacionalização’ das eleições autárquicas tenha escondido a discussão de matérias tão importantes como esta. Que foi iniciada no princípio do verão deste ano, com a apresentação, por parte do Partido Socialista, de uma iniciativa legislativa sobre a matéria. A qual pôs em evidência, não só várias divergências entre os partidos políticos da ‘geringonça’, como também a verdadeira natureza ideológica da extrema-esquerda portuguesa.

Não devemos dispensar este debate no nosso país, porquanto nos coloca perante a evidência de que a extrema-esquerda portuguesa (essencial e indispensável para a governação socialista) continua a olhar de soslaio para a propriedade privada.

Devemos recuar décadas atrás e ter presente como o PCP e os bisavós políticos e partidários do BE sempre entenderam a propriedade privada (bem como a iniciativa privada).

O que é a propriedade privada? Um privilégio? Absoluto ou relativo? Ou um direito – absoluto ou relativo? E que limites tem? Que garantias dá? Que diferenças existem, no que respeita à propriedade privada, na relação entre o Estado e os particulares?

É uma miríade de questões que se nos coloca sobre uma matéria tão relevante para a chamada cultura e vida ocidental, sobretudo nos países do sul da Europa.

Matéria que, ao longo da construção e solidificação do Estado moderno – das democracias demo-liberais –, tem merecido discussões e debates acesos. Havendo quem já lhe tenha chamado um «direito terrível», derivado do «trabalho dos nossos corpos e obra das nossas mãos e pés», «que é um privilégio que o Estado tem de conceder nuns e proibir noutros».

Matéria que tem merecido, até no seio da Igreja Católica, discussão acalorada, a par da problemática de como ‘usar a riqueza e o capital acumulado’. A propriedade privada é hoje um direito fundamental nas sociedades contemporâneas, na relação dos particulares com o Estado e demais poderes públicos.

Daí, não fazer sentido (mesmo a pretexto daquilo a que já chamaram o ‘direito da habitação’ e o ‘direito de boa vizinhança’) estabelecerem-se limitações no seu pleno uso individual. Sobretudo se tais limitações derivarem de preconceitos ideológicos. O Estado em Portugal – país cheio de invejosos, sobretudo alimentados pela incapacidade de criarem alguma coisa positiva (sem ser com o apoio do Estado), como emprego, riqueza e mais-valias – não pode de um momento para o outro querer ‘mandar’ naquilo que não é seu. E que é de outros.

A propósito, é bom que se tenham presentes alguns números. Por exemplo, que o alojamento local, só em Lisboa, criou quase 20 mil empregos. Sim, a tal ‘propriedade privada’. Está tudo num estudo do ISCTE, feito para a AHRESP. Com um impacto económico para a região de cerca de 1,6 mil milhões de euros. O estudo vem ainda atestar que cerca de 59% das casas do alojamento local estavam desocupadas. E que o impacto dos gastos diretos dos turistas é de quase 290 milhões de euros, e a taxa turística cobrada ronda os 5 milhões de receita.

Para quem anda distraído, é bom que, antes de se decidirem alterações precipitadas no regime jurídico do alojamento local em Portugal, se tenha presente que o arrendamento a turistas, no nosso país, vale neste momento 1% do PIB.

Julgo não fazerem sentido significativas alterações ao regime jurídico em vigor. Querer mais ou menos poderes para os condomínios autorizarem, pretender mais ou menos poderes para as Câmaras Municipais, quotas de autorização para arrendamento, maior ou menor carga fiscal, deve merecer discussão. Mas sem pressas.

Até porque só não vê quem não quer. O que seria de muitas cidades no nosso país se não tivessem o alojamento local?!

A alterar-se a legislação, com imposição de novas restrições, é fundamental que se preserve a propriedade privada. E os direitos adquiridos. Até porque foram os privados que, na maioria dos casos, contribuíram decisivamente para a recuperação e reabilitação de muitos centros históricos.

Cercear esses direitos à má fila é feio e mau para Portugal e para os portugueses. Assim, é necessário tudo fazer para limitar a influência da extrema-esquerda numa matéria como esta. A extrema-esquerda, na prática, tolera a propriedade privada. Tolera-a instrumentalmente. Não a aceita.

olharaocentro@sol.pt