Escrevi há anos uma crónica sobre a inteligência, onde dizia que há dois tipos de inteligência: a ‘horizontal’ e a ‘vertical’.
A ‘inteligência horizontal’ revela-se pela capacidade de lidar com muitos assuntos ao mesmo tempo. Claro que, como é impossível aprofundar todos, quem tem uma ‘inteligência horizontal’ trata dos assuntos pela rama, superficialmente, saltitando de um para outro. Marcelo Rebelo de Sousa é o exemplo de uma prodigiosa inteligência desse tipo.
Inversamente, os proprietários de ‘inteligências verticais’ aprofundam muito as questões mas são incapazes de lidar com várias em simultâneo. E em geral têm interesses limitados. No dia-a-dia, interessam-se verdadeiramente por três ou quatro tipos de assuntos – e o resto passa-lhes ao lado. O meu pai – António José Saraiva – era assim.
Ora, tal como há dois tipos de inteligência, também há dois tipos de felicidade.
Uma é a ‘felicidade momentânea’. Diz respeito a uma determinada situação e a um momento específico. Sinto-me feliz, por exemplo, à beira de uma piscina a ler um bom livro. Ou a celebrar um triunfo da minha equipa de futebol. Ou a ouvir uma música que me extasia. Ou num jantar romântico. Ou a brincar com os filhos ou com os netos. Este é o tipo de ‘felicidade momentânea’. Que vem de fora para dentro. Que tem muito a ver com o ambiente que nos rodeia e com a situação que vivemos.
Mas há outro tipo de felicidade, que é a ‘felicidade permanente’. Que se prolonga no tempo, podendo durar anos. Que não depende do momento. Que resulta do equilíbrio entre nós e o mundo, e se traduz numa paz interior.
Há muitos anos, em conversa com o meu amigo Fernando Dacosta, este afirmava: «Só os tolos são felizes». Percebi o que queria dizer. As pessoas com uma vida interior mais rica são em geral atormentadas, inquietas, insatisfeitas – e isso impede que sejam felizes.
Além de que existe um fator inibidor de uma felicidade plena: a consciência da condenação à morte. O facto de sabermos que todos os dias damos mais um passo em direção à morte impede-nos de ser completamente felizes.
As religiões dão uma ‘solução’ para este problema, oferecendo a certeza de uma outra vida para além da morte física. Mas os agnósticos não têm essa esperança. E por isso procuram muitas vezes a felicidade nos bens materiais, no consumo. «Quando me sinto deprimida vou às compras» – ouvimos dizer com frequência a muitas jovens e menos jovens. E aqui reside o grande equívoco: a felicidade não se compra na loja, não se alcança através do consumo ou da ganância, mas exatamente no contrário: na paz de espírito.
A ‘felicidade permanente’ implica, primeiro, estarmos satisfeitos com o que temos – e, por isso, uma pessoa invejosa dificilmente será feliz. Quem cobiça o que outros têm, não está satisfeita com o que é seu.
O caminho de cada um para a felicidade passa, pois, por saber apreciar aquilo que tem – desde os bens à família e à profissão – em vez de viver a ambicionar o que é de outros. ‘A galinha da vizinha é sempre melhor que a minha’ – diz o povo, parodiando a inveja. Quem pensa assim, não pode ser feliz. Quem não dá valor à sua galinha, não tira vantagem de a ter.
E depois vem a paz interior, a mais importante.
Sei por experiência própria que essa é a mais difícil de alcançar. Os orientais conseguem-na mercê de técnicas específicas, como o ioga – em que, através do imobilismo, se busca o esquecimento do corpo, que favorece a concentração e o domínio da mente.
Neste aspeto, a nossa civilização é muito primitiva. Desde o Império Romano, caminhámos no sentido do materialismo, do consumo, e não da satisfação do espírito. Ora, a paz consegue-se olhando para dentro de nós e não para fora. Consegue-se por um esforço de vontade e não à custa do que está nas prateleiras das lojas de roupas ou dos supermercados.
É este o caminho para a ‘felicidade permanente’. Que é exatamente o oposto da ‘felicidade momentânea’. Esta caracteriza-se por um estado geral de infelicidade, com momentos de felicidade; a outra caracteriza-se por um estado geral de felicidade, com momentos de tristeza.