Foi o ano mais trágico de sempre, com o fogo a levar 107 vidas – ontem, o balanço de vítimas mortais dos incêndios do último domingo subiu para 42. Não sairá da memória coletiva, mas as marcas no território alcançam uma dimensão também sem precedentes desde que há registos, e o ano ainda não acabou. Dados provisórios fornecidos ao i pela Guarda Nacional Republicana, responsável pela cartografia da área ardida que é fornecida ao Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), revelam que este mês arderam, até terça-feira, 227 436 hectares.
A somar ao balanço até 30 de setembro, que já tinha sido divulgado pelo ICNF, dá um total de 443 425 hectares.
O valor bate o pior ano de que havia registo no país: em 2003 arderam um recorde de 425 839 hectares. E apesar de aparentemente já ter passado o período crítico de fogos, o valor de 2017 deverá continuar a aumentar, uma vez que historicamente há registo de fogos em mato e áreas florestais em todos os meses do ano.
Embora a GNR não tenha fornecido dados detalhados sobre a área ardida por dia, as estimativas do sistema europeu de monitorização de incêndios EFFIS – que assenta em imagens de satélite e tende a apresentar números mais inflacionados do que as medições feitas no terreno pelos militares da GNR – revelam que foi entre o passado sábado e terça-feira que a área consumida pelo fogo disparou. De acordo com o EFFIS, que ontem projetava para Portugal um total de 520 515 hectares de área ardida desde o início do ano, desde sábado teriam ardido 180 mil hectares. Não sendo conhecido ainda o balanço nacional dos fogos do fim de semana, em particular dos 523 incêndios fatais que deflagraram no domingo, tantos hectares devastados em tão pouco tempo é também algo raro.
Domingos Xavier Viegas, perito em incêndios florestais que coordenou um dos relatórios sobre a tragédia de Pedrógão, fala de um valor “surpreendente” que tem de ser investigado, quer pelas perdas humanas que causou quer pela dimensão que atinge. Até aqui, o dia mais impressionante para quem segue o comportamento do fogo tinha sido 2 de agosto de 2003, em que arderam mais de 100 mil hectares. Nessa semana de 28 de julho a 3 de agosto de 2003 foram consumidos 240 mil hectares. As trovoadas secas que se fizeram sentir foram, na altura, uma das explicações dos peritos para o sucedido. Nesse ano houve 21 mortes nos incêndios.
No último fim de semana, Domingos Xavier Viegas, do Centro de Estudos sobre Incêndios Florestais da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, acredita que as condições que contribuíram para a violência do fogo foram muito idênticas às que se registaram em junho: ar quente, vento forte e uma vegetação extremamente seca, fenómeno que alguns peritos já atribuíram à passagem do furacão Ophelia. A suspeita de que a previsão de chuva terá motivado queimadas, mesmo estando interditas e, por isso, sem o acompanhamento dos bombeiros, como devem, é uma das hipóteses em cima da mesa – tudo a carecer de um estudo aprofundado, defende Xavier Viegas. Para já, nem esta equipa que estudou Pedrógão foi recrutada pelo MAI nem o parlamento falou de uma nova comissão independente. Xavier Viegas diz que interesse, têm, mas, “sem apoios”, o centro de investigação não tem condições para avançar com uma análise exaustiva como a que foi feita nos últimos quatro meses sobre Pedrógão.
O i questionou o Ministério da Administração Interna, que em junho – logo no fim de semana da tragédia de Pedrógão – pediu um relatório à equipa coordenada por Xavier Viegas, sobre se foi solicitado alguma análise técnica ao que se passou nos últimos dias. Com a demissão da ministra Constança Urbano de Sousa, o gabinete ministerial informou que se encontravam “em gestão”, não tendo sido fornecida resposta.
O que são 443 mil hectares?
É sempre possível recorrer à comparação dos campos de futebol, mas falar de 443 mil relvados talvez não ajude a visualizar a porção do país que já ardeu este ano. Tendo em conta que a cidade de Lisboa tem uma área de 10 mil hectares, este valor acumulado desde janeiro representa 44 vezes a capital.
Mas não foi Lisboa que ardeu, foram dezenas de aldeias afetadas e muitas das manchas verdes que se destacavam no mapa nacional. Aqui, é o EFFIS, cujo site na internet permite localizar a área ardida parcela a parcela, que permite um primeiro vislumbre do mato e floresta que desapareceu ao longo do ano e, em particular, nos últimos dias.
Não sendo os valores coincidentes com os das autoridades nacionais, vê-se – como já tem sido noticiado – que o Pinhal de Leiria foi praticamente todo consumido pelas chamas. Aqui, no chamado Pinhal Litoral, o EFFIS estima 18 500 hectares ardidos – só uma faixa verde junto à costa escapou. Nos incêndios de Santa Comba Dão e Oliveira do Hospital, o EFFIS estimava ontem mais de 100 mil hectares ardidos, concentrando-se aqui, no Pinhal Interior Norte, a zona mais afetada pela tragédia do fim de semana.