«A capacidade de assumir responsabilidades é a medida do homem».
Roy L. Smith
Sem anuncio prévio a qualquer autoridade local, sem informar jornalistas e de modo próprio, fiz no início da semana o que tinha feito em pleno verão, quando me desloquei aos territórios do Pinhal Interior e das Terras de Sicó, nordeste do meu distrito de Leiria, em razão do flagelo e do horror da catástrofe dos fogos.
Desta vez comecei pelos distritos de Aveiro e Coimbra, terminando ao final do dia no meu distrito de Leiria.
Confirmando, constatando com os meus olhos – e controlando o melhor que pude as emoções – a força da natureza e a incúria e a irresponsabilidade dos humanos.
De manhã à noite. Sim de manhã à noite, porque a manhã, desde as primeiras horas do dia, mais parecia capturada por um anoitecer quase permanente, parado no tempo, com um ar insuportável que nos impôs uma respiração ofegante e uma visão intermitente, acompanhadas, ambas, por uma tosse seca, irritante e permanente.
Tudo mau de mais para ser verdade e para ser vivido.
Cidades como Coimbra, carregadas de ar pesado e céu escondido, concelhos como Cantanhede e Mealhada, que mais pareciam aguardar trovoadas fortes. Vagos, concelho do distrito de Aveiro, com estradas cortadas ou condicionadas, ladeadas por labaredas avermelhadas e cor de laranja, ou árvores completamente destruídas.
Povo na rua. Sim, povo, sobretudo mais velho e humilde. A ver arder tudo o que está ainda por arder. Muitos deles perto de suas casas, junto de bicicletas, motos, carros e carrinhas.
Poucos carros de bombeiros. Alguns, aqui e acolá, a apagarem o que podem. Relatos de horror, de noite mal dormida, com 36 graus de calor, onde foi preciso tudo: coragem, destreza, sorte, para defender os seus bens, as suas casas, as suas vidas.
Muita raiva, muitas tristezas acumuladas, visíveis por detrás dos seus olhos e moderadas pelas suas bocas.
Mira, concelho coimbrão, território também balnear, é bem o exemplo da destruição. Até onde nada o fazia supor. Os relatos são quase impossíveis de não provocar revolta. Não só contra a natureza, mas sobretudo contra os ‘poderes’, os políticos, o Governo, os «senhores de Lisboa».
Sim, de Lisboa. Porque, como me confessou na rua uma senhora de provecta idade, de bengala na mão, que teve de dormir na casa de uma vizinha da aldeia, o país que arde não é o país de Lisboa. É o outro país. O país das pessoas normais. Que só aparecem na televisão pelos fogos, pelas catástrofes e quando ficam sem quase nada.
Tudo é mau de mais para se perceber e ver. Quilómetros e quilómetros ardidos. Sempre a parecer anoitecer. Sempre parecendo que estamos nas cidades mais poluídas do mundo. Apetecendo tapar a boca. Lavar os olhos. Vomitar.
Mas o pior veio a seguir. Na fronteira do distrito de Leiria, vindo das terras de Coimbra. Na Figueira da Foz, em Leiria, Marinha Grande, Alcobaça, Pataias, tudo era mau de mais para ser verdade. Muito do que conheci desde criança desapareceu. Muito onde vários de nós — que batemos aqueles territórios e que tudo temos feito para os valorizar e representar – se sentem hoje muito pequeninos.
Do meu Pinhal de Leiria, onde passeei vezes sem conta, onde andei de bicicleta, onde fiz vários tipos de jogos, onde realizei mais tarde ações diversas sobre ambiente e política das florestas, resta pouco.
Ao testemunhar o que vivi no meio dos fogos, entre Vagos, Cantanhede, Mealhada, Mira, Figueira da Foz, Leiria, Marinha Grande, Pataias, percebi e confirmei que a natureza é forte, sendo necessário que nós, humanos — o Estado — o sejamos ainda mais.
À semelhança do que confirmei em pleno verão, nos territórios do norte do distrito de Leiria, não existe justificação para estas tragédias. Não existem desculpas.
São muitas as causas. São muitos os culpados. Têm de se retirar as devidas consequências. É o tempo da justa revolta dos prejudicados. Mas é também o tempo certo para a culpa não morrer solteira. Temos de ter rostos. Passou tempo demais. Numa democracia adulta, a responsabilidade política não se esconde.
Outra coisa é não assumir a realidade. Que horrores e catástrofes deste tipo são consequência de muitos erros, de vários presidentes da República, vários governos, vários primeiros-ministros, que abandonaram muito território nacional, depenando-o em serviços públicos.
É o que dá muitas vezes escolherem as políticas públicas e as pessoas erradas. Pessoas que, nestas alturas, normalmente são as primeiras a colocar gravatas pretas e a ‘fazerem-se anunciar’, vindas de Lisboa, mostrando a sua ‘preocupação’ com a tragédia.
Até nesse domínio, estes horrores que nos sirvam de lição.
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